Notas sobre o comentário desta noite (2)
1- O Miguel esteve mais do que irrepreensível: ele foi o único que pôs as coisas nos termos que verdadeiramente importam. O debate sobre o casamento homossexual não é sobre a liberdade e transcende as questões de interpretação jurídica, pois estamos a lidar com algo mais profundo: as formas de reconhecimento simbólico inter-subjectivo que constituem e estruturam a nossa vida social e colectiva. São estas formas de reconhecimento, e não a lei, que constituem o fundamento de qualquer edificio jurídico-constitucional, sem as quais este não teria qualquer significado. Mas importa dizer que esse fundamento não é estático - e muito menos natural; ele é historicamente mediado, e depende de uma contínua reapropriação criativa da nossa tradição cultural. A tradição é, pois, um horizonte de sentido que deve estar em permanente discussão. Por outro lado, aquilo que o Miguel defende (acho eu) é que só a homofobia (muitas vezes inconsciente) explica a exclusão dos homossexuais da instituição cultural a que chamamos casamento.
2-Concordo com o Vasco: a adopção deve ser assumida por todos aqueles que reconhecem a importância da dimensão simbólica do casamento. A timidez ou o desconforto com que alguns tratam este tema, é um erro e fragiliza a sua posição. Se o casamento é mais do que um instrumento legal que visa a obtenção de determinados direitos, então devemos assumir o pacote completo. Não há meios combates e, por isso, a adopção não pode ser entendida como uma questão distinta.
3. "O ENP parecia ter uma posição de princípio interessante", diz o Vasco. Pois tinha. O problema é que a questão do valor social do casamento só pode excluir os homossexuais se a reprodução for entendida de forma estritamente natural (ou se se considerar que os homossexuais constituem uma ameaça ou praga social). A partir do momento em que existe inseminação artificial e adopção, a questão da naturalidade da reprodução perde significado, pois a normatividade assenta em algo distinto da natureza. Se considerarmos que o valor de constituir família pressupõe os filhos, a única questão que importa é a seguinte: será legítimo que um casal homossexual possa educar um filho? Eu acho que sim, e parece que a experiência (para aqueles que defendem o princípio da precaução) tende a confirmar a minha opinião. E, contrariamente ao que foi ontem afirmado, consta que há vários estudos que apontam neste sentido. É muito curioso ter-se falado de Freud, aquele senhor que tratava a homossexualidade como uma patologia...
4. A diferença entre estar errado e ser errado é brilhante, e toca, a meu ver, no fundamental.
5. Discordo do Vasco: apesar da indigência (que chegou a ser alarve) da maioria dos argumentos dos defensores do Não, este foi um dos melhores prós e contras que já vi.
6-"Assistimos à derrota total dos partidários do casamento como direito exclusivo dos heterossexuais. Total". Subscrevo tudo o que foi dito pelo Vasco, acrescentando: mais do que a estupidez (sim: estupidez) e o preconceito de certas intervenções, incomoda-me que haja gente que, depois de uma série de alarvidades insultuosas, tem o descaramento de dizer que não é homofóbica. Sejamos sérios, ou, pelo menos, tentemos sê-lo. Não é pedir muito, pois não?