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Rastejar no esterco

Não custa perceber que a praxe académica tivesse sido inventada. Não é sequer preciso consumir documentários da National Geographic sobre as provas de entrada dos adolescentes de tribos africanas na vida adulta para nos darmos conta da importância social dos rituais de iniciação. A Confraria do Vinho do Porto organiza as suas entronizações com grande pompa, tal como entre os maçons do Grande Oriente Lusitano a iniciação de um profano no grau de aprendiz é uma passagem das trevas à luz feita sob o símbolo do triângulo e creio que ao som de Mozart. Eu próprio, ateu convicto, esqueci entretanto a minha primeira confissão mas recordo a primeira hóstia – e é uma pena esta hegemonia do paladar sobre o remorso não ser uma constante da vida..

Entre nós, a praxe académica remonta à velha Universidade de Coimbra, onde os Archeiros, um corpo universitário investido de jurisdição especial, faziam pelo cumprimento das horas de estudo e recolher obrigatório com zelo. Assim se criou uma hierarquia em que os alunos mais velhos exercem o seu poder com impunidade sobre os mais novos. Estes rituais, então designados por “investidas”, o que remete hoje, com propriedade, para a sua natureza essencialmente bovina, cedo se notabilizaram pela violência e, em 1727, devido à morte de um caloiro, D. João V decide pôr fim à brincadeira. Mas a praxe, após essa e outras interrupções que se lhe seguiram (com a implantação da República, em 1910, e com a crise académica, de 1960), foi sempre voltando. Na sua versão actual, mantém a violência de outros tempos e, claro, acentuou a humilhação sexual. Apesar do peso da história, fica a pergunta: e não se pode mesmo exterminá-la?

Com a excepção das ridículas figuras que são o veterano venerável ancião e os seus comparsas, quem defende esta praxe académica? Uma tradição que nos últimos dez anos tem no currículo a morte de um estudante de arquitectura e, pelo menos, uma violação, é uma tradição descartável. A violência doméstica, se pensarmos bem, também é uma tradição. Sim, lembro-me que no meu tempo participei na praxe, como caloiro e depois como veterano, e guardo uma recordação agradável, nomeadamente de uma aula aterrorizadora dada por um falso professor. Mas isto de nada vale, se há quem não perceba os limites. Mariano Gago prometeu denunciar ao Ministério Público todos os responsáveis de universidades e politécnicos que pactuem com praxes violentas, instituições que podem agora ser condenadas em tribunal Em Évora, o reitor Jorge Araújo instaurou um processo de inquérito aos autores de uma praxe em que os caloiros tiveram de rastejar sobre excrementos de animais. Agora que a época de praxes termina, pergunto-me se o caso de Évora será o único. Talvez seja tempo de fazer o balanço e acertar as contas. Este assunto já fede.

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