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jugular

kuku e courbet

Agentes da PSP resolveram apreender, no dia 23, exemplares de um livro exposto numa feira do livro em Braga, por o mesmo ostentar, na capa, uma reprodução de um quadro que por sua vez reproduz, de forma assaz realista (naturalista, até), as coxas e o sexo de uma mulher. O pretexto foi, segundo os agentes, a queixa de alguns adultos que se haviam deslocado à feira com a respectiva prole e consideraram a ilustração "ofensiva" e "pornográfica". A acção policial, amplamente noticiada no próprio dia, foi coberta de ridículo, taxada de censora, bacoca e até de ilegal . Ao Público, um juiz chegou a sublinhar que para se ser comandante de polícia hoje em dia é necessária uma licenciatura e que por isso os responsáveis da PSP de Braga não teriam desculpa por não conhecer (reconhecer será a expressão apropriada) o quadro de 1866 do pintor francês Gustave Courbet (A Origem do Mundo) que o livro exibe.

Por partes: de acordo com a lei 254/76, ainda em vigor (e cujo hilariante preâmbulo se recomenda), as autoridades policiais podem apreender "objectos de conteúdo pornográfico ou obsceno" quando "expostos na via pública". A lei exime-se de explicar o que é "o pornográfico e o obsceno", de modo que a apreciação e distinção, referida no tal preâmbulo, entre o que pode (e deve?) ser apreendido e "o erótico e o nu artístico" depende dos olhos (e mundividência, e bom senso, e falta dele) de quem pode apreender. Quanto ao argumento de que a imagem em causa é uma reprodução de uma obra de arte e portanto vê-la como obscena e/ou pornográfica é um sinal de falta de cultura só pode ser invocado por quem esteja muito pouco familiarizado quer com a arte em geral (contemporânea e não só) quer com as polémicas e escândalos associados à sua natureza transgressora (incluindo, em 1998, a apreensão, pela polícia britânica, de um álbum do fotógrafo Robert Mapplethorpe, propriedade de uma universidade de Birmingham, por ter sido, precisamente, considerado pornográfico/obsceno).

Concluindo: os polícias de Braga fizeram um disparate (e a lei que para tal os mandata é outro e deve ser alterada - assim as prioridades o permitam, claro). Mas apodar o seu acto de gravíssimo atentado à liberdade de expressão e democracia e por aí fora só pode ser falta de assunto. Ou isso ou a vontade descabelada de ver fascismo em tudo o que mexe - e como la hay. Sucede que todo o barulho que se fez a este propósito contrasta com todo o barulho que se não fez quando, a 5 de Janeiro, um rapaz de 14 anos foi morto com um tiro na cabeça - ao que parece, segundo a perícia da Polícia Judiciária, à queima-roupa - por um agente da mesmíssima PSP. O rapaz, Elson Sanches - ou Kuku - era negro, vivia num dos últimos "bairros de lata" do País e, afiançou-se (com base na informação policial), um delinquente. Foi quanto bastou para que a sua morte passasse sem escândalo - quase sem perguntas, até. Não, a vida apreendida de um Kuku não vale a "censura" de um Courbet. Decerto porque o Kuku é que era pornográfico.

 

(publicado hoje no dn)

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