O saloio de New Haven
A pouco mais de 48 horas do Dia D das eleições americanas, fui ver o W. Foi acaso, não foi propositado. Mas não podia ter escolhido melhor altura. Porque a sensação do "virar de página" não podia ter sido maior. O filme surpreendeu-me, e pela positiva. A obra não tem nada de polémico, não é um zurzir nas costas do presidente em últimos dias de desempenho, não é um "bater no ceguinho". Na verdade, tudo o que por ali desfila era conhecido há muito. Mas faz impressão vê-lo assim, composto, de enfiada, como um enredo cinematográfico. A desorientação com o 11 de Setembro, a leviandade da invasão do Iraque, os cordelinhos puxados pelos personagens de segundo plano, nomeadamente Dick Cheney (um magnífico Richard Dreyfuss), a completa falta de responsabilidade. No meio, um filho-segundo desdenhado pelo pai e marcado pela sua sombra.
O filme não é sobre manobras na Casa Branca nem sobre jogos do poder. Pelo contrário. É sobre um homem que chegou a presidente sem saber muito bem como. Não é o idiota que eu julgava. Posso dizer que nunca simpatizei tanto com ele como agora. Trata-se, evidentemente, de um filme mas, pela primeira vez, entendi aquele ar de completa desorientação quando, no dia 11.9.2001, lhe disseram que "the nation is under attack" e ele continuou a ler uma história com as crianças de uma escola, sem reagir durante 7 minutos, gelado, petrificado. Um homem simples, que nunca devia ter chegado a presidente.
O filme oscila entre a tragédia grega e o ridículo. De tragédia grega tem a profundidade da dimensão humana de alguém que se viu catapultado para uma posição para a qual não estava fadado e não possuía nem capacidade, nem habilitações, nem perfil. Alguém dilacerado pela sombra do pai e com vontade de vencer, de não desiludir e de provar que era capaz de ultrapassá-lo. Infelizmente, foi. O ridículo decorre da sua inabilidade mediática, das constantes gaffes, do perfil simplório e tosco, da falta de polidez, da religiosidade básica. Um verdadeiro redneck. Um homem que gostava de basebol e de rancho e que governava por intuição e palpite. E que invadiu o Iraque por intuição e palpite, arrastando o país para um poço sem fundo sem saber muito bem como sair dele. Percebe-se que há ali mais, que muito ficou por dizer.
O maior interesse do filme reside precisamente na indefinição desta sombra cinzenta entre as duas dimensões. Aquilo que não é dito e aquilo que apenas é sugerido. Por exemplo, não define qual o exacto papel das igrejas evangélicas na sua governação. Remete Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz para desempenhos discretos comprovadamente muito aquém dos reais. Sugere que houve informação ocultada e sonegada ao presidente, mas não vai mais além. Em vez disso, exala em torno deste um aroma de ingenuidade voluntariosa e bem-intencionada. Um presidente que brinca às guerras em nome do valor supremo da liberdade, e que posteriormente fica muito espantado com o caos instalado, as baixas e o arrastamento da guerra. E, azar dos azares, com o facto de nunca ninguém ter descoberto nenhuma arma de destruição maciça. As figuras do staff presidencial são todas detestáveis, um Rumsfeld frio, um Cheney cínico, um Rove manipulador, uma Condoleezza pouco menos que imbecil. Salva-se, como era de esperar, Colin Powell, a voz da experiência e do bom-senso no meio da alucinação colectiva.
Bush fica para a História, não sei se como o pior presidente americano de todos os tempos, mas certamente como o mais odiado, o mais vilipendiado, o mais satirizado. Sai de cabeça baixa, renegado por todos, até pelo candidato do partido que o elegeu., até pelos neocons (como Fukuyama) que foram os avatares da sua política. Não sei. Há aqui algo de irónico e de trágico. Como se ele, no fundo, não tivesse sido eleito democraticamente, por dois mandatos sucessivos. Uma coisa é certa. Não haverá outro igual.


