volta, ribau, tás perdoado
há um ano, a actualidade político-jornalística portuguesa foi abalada por uma polémica desencadeada pelo ataque protagonizado por vários dirigentes do psd contra uma jornalista de quem a maioria das pessoas nunca ouvira falar. estava em causa, para os ditos dirigentes -- agostinho branquinho, rui gomes da silva, ribau esteves, alberto joão jardim e luís filipe menezes, o próprio presidente do partido, e reportando-nos apenas aos que falaram publicamente sobre o assunto -- "uma relação" entre a dita jornalista e o primeiro-ministro, alegada relação essa que justificaria, para o PSD, que a jornalista fosse impedida de efectuar uma série de documentários (eles falavam em 'apresentar um programa') para a rtp2, já que para o psd isso implicaria que usasse o espaço para atacar o psd e defender o ps e o governo. para os dirigentes do psd, o facto, que davam como certo, de existir uma relação entre duas pessoas implicaria, necessariamente, que tivessem as mesmas ideias, objectivos e visão, e, no caso, que uma se subordinasse inteiramente àquilo que a seu ver conviria à outra.
as declarações dos dirigentes, que ocorreram em crescendo e ao longo de vários dias, incluindo uma conferência de imprensa e um comunicado (apresentado por ribau esteves), foram acolhidas por um notável coro de protestos e críticas violentas, que incluiram, dentro do partido, pacheco pereira, paula teixeira da cruz, pedro passos coelho, antónio capucho e marcelo rebelo de sousa -- que no seu programa dominical considerou a atitude da direcção do partido 'abaixo de cão' --, e, fora, lobo xavier, judite de sousa, mário crespo, miguel sousa tavares, ferreira fernandes, pedro marques lopes, joão marcelino, rui tavares, joão miguel tavares, constança cunha e sá, ricardo araújo pereira, o sindicato dos jornalistas e muitos outros, incluindo muita gente na blogosfera que me eximo de lincar porque me dá trabalho e porque há apoios e declarações e rasgados elogios que envergonhariam muito os seus autores e há que dar-lhes tempo de os apagarem, se, à boa maneira estalinista, já o não fizeram.
foi aquilo a que se chama uma onda: toda a gente que era gente e mesmo quem não era queria dar uma cachaporrada em luis filipe menezes e apaniguados, e deu. menezes, já muito debilitado, acabou por se demitir pouco depois e o resto da história é sabido. a um observador minimamente atento -- e lúcido -- não passou despercebido o facto de o coro de elogios e exigências de respeito em relação à jornalista e à sua vida privada ser, sobretudo e talvez quase inteiramente, ocasionado pela vontade de atacar e apoucar e expulsar menezes. como não passou despercebido que entre os jornalistas poucos (nenhuns, na verdade) foram os que tiveram o cuidado de nas suas notícias e peças sobre o assunto questionar o sentido de se pôr em causa a liberdade de trabalho e o profissionalismo de alguém com base numa relação pessoal, verdadeira ou alegada. aliás, quem senão os jornalistas, ou gente que passa por tal, se referira pela primeira vez a essa jornalista como 'a namorada de', passando a denominá-la dessa forma, como se não tivesse um nome e uma existência autónoma e uma profissão com duas décadas de prática e um corpo de trabalho para falar por ela?
não pode pois ser surpreendente que um ano depois os mesmos -- jornalistas ou gente que passa por tal e que nunca deve ter passado os olhos por uma coisa chamada código deontológico e outra chamada estatuto dos jornalistas, quanto mais ter por si qualquer noção do que é a ética jornalistica -- façam notícias e títulos de primeira página e peças de televisão e jornais 'sérios' denominando a mesma jornalista, a propósito de qualquer coisa que lhe suceda ou opinião que dê, como 'namorada de'. a jornalista, com nome, personalidade e história e trabalho, não existe. passou a ser uma emanação, excrescência ou prolongamento de outra pessoa. as suas declarações são apresentadas como as de 'namorada de'. tudo o que pensa e faz e diz é o que diz e faz e pensa 'a namorada de'. não importa se quem assim a denomina não teria como sequer certificar, com base em estritos critérios jornalísticos de rigor e credibilidade e de não imiscuição na vida privada -- nomeadamente assunção da própria, até ver a única legitimada para assumir ou não relações --, que se trata da 'namorada de'. não interessa nada. é, acreditam, 'assunto'. é, acreditam, 'notícia', e 'interesse público, e 'do público'.
quando escreveu há um ano sobre este assunto, pacheco pereira pôs o dedo na ferida. falou de machismo, desse atávico desrespeito pelas mulheres que perpassa a maioria das cabeças e que encara qualquer mulher como estando sempre e necessariamente comandada, dirigida, presidida por um homem com quem se relacione. é machismo, sim. mas ao machismo juntou-se mais qualquer coisa. aquilo que faz com que do coro de galantes defensores não reste quase nada -- porque agora os dados são outros, o jogo mudou. e o direito à personalidade, à liberdade profissional e à liberdade de opinião, há um ano incensados, já não têm importância -- pelo contrário, inexistem. a liberdade era só até certo ponto, era só até dar jeito, era só a fingir.
o problema da liberdade, já se sabe, é que não é assim a modos que uma coisa que se conceda: é um direito que se assume e se defende -- e que não existe para fazer jeitos ou servir senhores. mas isso é outra história, e este não é lugar para ela. aqui é o lugar para, perante isto e tantas outras coisas como esta, exigir um jantar de desagravo para ribau esteves e companhia. ele, 'o indivíduo ribau' -- como lhe chamou pulido valente -- tinha razão, afinal. a jornalista é 'namorada de' e 'a namorada de' é a 'namorada de'. razão antes do tempo, como se costuma dizer, mas razão. ria, ribau. eu rio-me consigo.