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Soluções à procura de problemas

Uma solução é solução para alguma coisa. Que problema resolveria então a criação de uma portagem à entrada do concelho de Lisboa?

Os homens gostam de viver em cidades. Essa preferência pode ser satisfeita porque as cidades são uma forma económica de organizar a vida em sociedade, visto que, ao aproximarem as pessoas umas das outras, reduzem toda a espécie de custos de transacção.

A área metropolitana de Lisboa está espalhada por uma área gigantesca que, apesar de ir de Torres a Setúbal, aloja apenas 2,6 milhões de pessoas. Logo, os habitantes não beneficiam dos ganhos de proximidade e gastam muito tempo e dinheiro em deslocações dentro dela.

Lisboa é uma metrópole disfuncional, pocuo agradável para quem cá vive e ineficiente do ponto de vista energético.

A natureza do território ajuda a explicar a sua expansão em mancha de óleo a partir dos anos 60, mas a causa fundamental é o deficiente planeamento urbano que sistematicamente acomodou a construção clandestina e os loteamentos selvagens.

É caro infra-estruturar um território com uma população tão dispersa. Levou-se electricidade, água e telefone a toda a gente com custos colossais, mas não se pode fazer o mesmo, por exemplo, com o comboio.

Os escassos terrenos que beneficiaram de um investimento urbano minimamente consequente encareceram brutalmente por comparação com periferias-dormitório, mal servidas de equipamentos sociais, de espaços verdes e de acessos. Esse encarecimento relativo estimulou a fuga para a periferia e o esvaziamento do centro, que não parou de perder população ao longo de três décadas.

Entretanto, alguns concelhos limítrofe sofreram uma requalificação significativa, o que os tornou mais atractivos para viver e trabalhar. Depois de fugirem os residentes, também os empregos começam a fugir do concelho de Lisboa.

Os lisboetas queixam-se de que a cidade está cheia nos dias úteis, mas também de que está vazia à noite e aos fins de semana. Esse fenómeno reflecte uma progressiva perda de funcionalidades e, logo, de atractividade do centro metropolitano.

A consequência mais óbvia e perigosa é a fragmentação da Grande Lisboa. Cada vez mais, muitos dos seus habitantes passam meses ou mesmo anos sem sem se deslocarem à inner Lisbon.

As distâncias percorridas pelos habitantes tendem a crescer, o que, nas circunstâncias presentes, implica mais deslocações de automóvel e mais ineficiência energética.

Eu diria, portanto, que é necessário compactar Lisboa, reforçar o centro e reestabelecer uma relação mais equilibrada entre o centro e a periferia. Isto implica promover a mobilidade no interior da região, mas de uma forma que proteja o ambiente economize energia, o que necessariamente nos remete para a promoção do transporte público.

Como é que a criação de uma portagem à entrada do concelho de Lisboa poderá contribuir para fazer isso? Os adeptos desta solução propõem-se antes de mais reduzir a entrada diária de carros na cidade e a consequente circulação, com o que ela ganharia em qualidade do ar e descongestionamento. Vêem-na, além disso, como um incentivo à utilização do transporte público para entrar na cidade. Acreditam, por último, que as receitas da portagem urbana permitiriam financiar a melhoria do transporte público.

Começarei por fazer notar que em Lisboa, ao contrário do que se passa na generalidade das cidades europeias, paga-se portagem para circular nas auto-estradas e pontes de acesso ao concelho. O único eixo não pago é o de Sintra. Logo, a portagem agora proposta consistiria basicamente em acrescentar uma nova linha de fortificação contra a quotidiana invasão dos subúrbios. Que resultados daí adiviriam?

Em primeiro lugar, um encarecimento relativo dos terrenos e das casas dentro do concelho, o que contribuiria para torná-lo ainda menos atractivo do que já é para os residentes e para as empresas. Daí tenderá a decorrer uma maior desertificação da cidade.

Em segundo lugar, um agravamento das condições de deslocação quotidiana dos residentes dos subúrbios que trabalham em Lisboa.

Em terceiro lugar, um aumento da circulação automóvel dos residentes dentro da cidade, tirando partido da retirada dos veículos dos não residentes.

O segundo ponto será certamente contestado pelos adeptos da portagem. Alguns, porque acham que os transportes públicos são já suficientemente bons, e que a sua não utilização deve-se sobretudo à força das rotinas instaladas ou a preconceitos snobs. Outros, porque só concebem a instalação da portagem em articulação com um investimento significativo e sustentado na melhoria da rede dos transportes públicos.

A opinião de que dispomos já de bons transportes públicos é desmentida tanto pela experiência quotidiana de tanta e tanta gente como por elementares comparações internacionais com cidades de dimensão e características comparáveis às de Lisboa. Há cada vez mais percursos casa-trabalho que pura e simplesmente não são servidos por qualquer forma de transporte público.

Fica então de pé a alternativa de se usar as receitas das portagens para resolver o problema. A primeira pergunta que cabe aqui fazer é: por que não antes? Por que não melhorar primeiro os transportes públicos e só depois eventualmente introduzir as portagens?

O argumento, aparentemente, é que as próprias portagens libertarão as verbas necessárias para financiar esse projecto. A isso eu responderei duas coisas: a primeira, é que as portagens que já são pagas para entrar em Lisboa nunca, até hoje, foram utilizadas para reforçar o sistema público de transportes. A segunda é que a melhoria desse sistema demorará anos e anos, durante os quais aqueles que hoje não têm alternativa melhor que o transporte individual sofrerão uma nova degradação da sua qualidade de vida com um aumento dos tempos de deslocação de casa para o trabalho.

Proponho, assim, uma primeira conclusão: as portagens melhorarão a qualidade de vida de quem mora no concelho e de quem, vindo de fora, tem capacidade económica para as pagar. Todos os restantes habitantes da região ficarão pior.

A minha segunda conclusão é que a região metropolitana tornar-se-á mais desarticulada do que já o é. Alguns concelhos limítrofes que entretanto ganharam qualidade de vida (estou a pensar antes de mais em Oeiras) poderão optar por instituir também portagens à entrada.

Decorre daí uma terceira conclusão: com a desagregação da região, aumentarão genericamente os custos de transacção e a metrópole tornar-se-á menos eficiente e, logo, menos competitiva no panorama internacional.

A longo prazo, antevejo resultados ainda mais catastróficos. Lisboa concelho dificultará o acesso aos cidadãos ao mesmo tempo que perde centralidades, ou seja, ao mesmo tempo que oferece menos valor acrescentado. Acentuar-se-á a tendência para uma área metropolitana multi-popular disfuncional, o que destrói a capacidade de atracção da cidade, fragmenta o território e potencia uma organização espacial que reforça a discriminação de classe.

Lisboa concelho já não é hoje um pólo suficientemente atraente para poder dar-se ao luxo de criar barreiras ao acesso. Precisamos de ligar e coser uma malha urbana corroída por factores potenciadores de desagregação, não de criar novos factores de divisão ou mesmo de exclusão. O centro da região de Lisboa precisa de reaprender a prestar serviços à periferia, não de hostilizá-la.

As portagens à entrada de Lisboa são uma solução simples, rápida, económica e, sobretudo, moderna. A experiência passada sugere, pois, que tem todas as condições para ser posta em prática, por muito evidentes que sejam os seus defeitos. Não esqueçamos, além do mais, que tudo o que agrava as desigualdades sociais foi inventado aqui.

É claro que há outra via, mais difícil e morosa – principalmente porque implica a constituição da região político-administrativa de Lisboa – mas, a meu ver, a única que nos levará a algum sítio onde vale a pena ir.
 

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