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A liberdade não é uma palavra vã

Vou escrever sobre aquilo que não vivi. Tinha 7 anos em 1974 e tenho apenas imagens vagas sobre o que ocorreu então e o que se passou antes. Já adolescente pertenci a associações de estudantes no liceu e os primeiros despertares para as questões políticas remontam aos primeiros anos da década de 1980, quando os problemas e as preocupações eram já outras. Vagueei próximo da JC durante uns tempos, ao mesmo tempo que frequentava a Festa do Avante e tinha fama de comunista em alguns círculos, e de "CDS" noutros, o que me fazia rir. Nunca me filiei em nenhum partido, se calhar por causa disso mesmo. Do riso, principalmente.

Hoje é comum ouvirem-se lamentações sobre o desconhecimento que os jovens têm desta história recente, da liberdade de que todos usufruem e que têm por garantida mas cujo valor desconhecem. Do direito ao voto que não exercem e que não sabem o que custou a conquistar. Só damos valor ao que não temos, é uma verdade universal. Os jovens que desconhecem o que é viver num país sitiado, respirar um ambiente saturado, uma atmosfera sufocante, a olhar por cima do ombro com medo da denúncia, dos bufos, da incerteza de quem pode estar a ouvir. Onde a liberdade era tomada e exercida em pequenos gestos, pequenas  revoltas, pequenos passos. Imagino o que seria viver num país onde não se podia falar, não se podia ouvir, não se podia ver. De canal de televisão único, de imprensa censurada e vigiada, de paleio pseudo-patriótico sobre Pátria, Deus e Família, orgulhosamente só, desconfiado, até à paranóia, das contaminações que vinham do exterior. Um Ultramar em guerra, um país cansado e cercado por todos os lados. Portugal condenado nos fóruns internacionais, isolado, desprezado. Confesso que uma imagem que me é mais surpreendente e dolorosa de ver é a do ministro Rui Patrício a discursar para uma assembleia da ONU vazia. Uma verdade real e uma verdade oficial, visões inconciliáveis da mesma realidade, consoante a origem. Um país provinciano, tacanho, mesquinho, reverente, remoto, surdo e cego, triste, conformado, beato e pequeno. Uma percepção do tempo e da realidade do império ultramarino estática, imóvel, parada no tempo. Como se Portugal fosse uma Miss Havisham  de Dickens que tivesse quebrado todos os relógios, a fim de manter e preservar um estado ideal. Uma mentira piedosa. Um vazio. Um atraso. Quem se debruça sobre o panorama da historiografia portuguesa da época sobre matérias ultramarinas depara com um deserto, uma terra queimada. Há um atraso de décadas. Neste campo como, certamente, noutros.

E, no meio, toda uma geração (ou várias) encurralada. Colocada perante escolhas impossíveis. Calar o que não podia mais ser calado, arrastar-se por trilhos já gastos e anacrónicos, como se Portugal fosse uma vetusta bolha de passado num mundo em rápida transformação. Engolir em seco e aguentar. E uma guerra à espreita, uma guerra interminável, uma guerra estranha numa terra estranha, em nome e em defesa de uma quimera. Uma guerra com 13 anos, em 3 cenários diferentes, para onde se ia mancebo e se regressava homem, tantas vezes brutal e dolorosamente maduro. O apelo da emigração, da saída, da liberdade, do conhecimento e do mundo. A luta, a resistência. Esta música fala disso. Não é uma música qualquer. Para mim, que não vivi, é uma música exemplar. O medo e a esperança. Há 35 anos, subitamente, acabou. É algo que os jovens de hoje não sabem, nem sonham. Mas foi para isso mesmo que acabou..

 

 

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