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"Tratamento" da homossexualidade: cronologia dos acontecimentos e mais uns pozinhos

Em Março passado Annie Bartlett, Glenn Smith e Michael King, investigadores do departamento de saúde mental de duas universidades londrinas, publicaram o artigo de "The response of mental health professionals to clients seeking help to change or raedirect same-sex sexual orientation". De acordo com os autores "we know very little about mental health practitioners' views on treatments to change sexual orientation. Our aim was to survey a representative sample of professional members of the main United Kingdom psychotherapy and psychiatric organisations about their views and practices concerning such treatments." (sublinhados meus).

 

No Público de 2 de Maio Andreia Sanches assina um trabalho jornalístico intitulado "Tratamentos para alterar orientação sexual não são coisa do passado", assumidamente feito na sequência da publicação do referido artigo, e coloca o mesmo tipo de questão a diferentes psiquiatras e psicólogos nacionais. Recordo que o que estava em causa era saber-se se os técnicos "caso fossem procurados por um cliente que pretendesse "mudar" ou "redireccionar" a sua "orientação homossexual" tentariam fazê-lo". No grupo de inquiridos estavam o Presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos (OM), João Marques Teixeira, e o presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, Adriano Vaz Serra, apresentados pela jornalista nessas qualidades.

Dois apontamentos a este propósito. Enquanto psiquiatra fiquei desagradada, digamos assim, com a falta de cuidado técnico posto nas respostas, que entretanto não seriam rectificadas nem corrigidas publicamente por nenhuns dos intervenientes. Impressionou-me, em particular, a confusão entre "orientação sexual" e "identidade de género" e a divisão desactualizada e cientificamente errada entre homossexualidade "primária" e "secundária" presentes nas resposta de Marques Teixeira. Causou-me, também, alguma estranheza que Adriano Vaz Serra tenha apelado ao autor australiano N. McConaghy para sustentar cientificamente o uso de técnicas cognitivo-comportamentais em tais "tratamentos", recordando-me de imediato do seu artigo "Classical, avoidance and backward conditioning treatments of homosexuality" de... 1973. Passaram-se imensas coisas entretanto, incluindo ter-se abandonado, com base em justificações médico-científicas, a integração da homossexualidade nos instrumentos classificativos internacionais das doenças psiquiátricas. E não foi só a Associação Americana de Psiquiatria a rever tal posição nosográfica, é uma realidade mundial, também contemplada pela International Classification of Diseases da Organização Mundial de Saúde, na versão para as doenças psiquiátricas.

 

Daniel Sampaio refere o assunto na sua crónica da Pública de 10 de Maio, "Crenças e valores", questionando e criticando algumas opiniões anteriormente expressas (recordo que o faz na qualidade de psiquiatra e aproveito para subscrever, em absoluto, o que aí é dito).

 

Dia 12 de Maio surge um press release assinado por inúmeras associações que "desafia bastonário da OM a pronunciar-se claramente sobre "reorientações de orientação sexual e de identidade de género".

 

No Público de dia 13 de Maio a jornalista Andreia Sanches retoma o tema e assina o artigo "Associações escandalizadas com terapias para mudar orientação sexual", a propósito do qual julgo importante fazer algumas anotações.


(i) Relativamente às declarações de Marques Teixeira, não me parece que tenham sido as associações a interpretarem mal as suas palavras, os termos técnicos é que foram mesmo mal usados. Tanto quanto julgo saber não existe nenhuma definição técnica para "reenquadrar", "reorientar" ou "redireccionar" mas existem definições precisas para "identidade de género" e "orientação sexual". O que é reenquadrar uma identidade de género é a pergunta que se impõe a João Marques Teixeira, quer ele esteja a responder enquanto psiquiatra quer enquanto psiquiatra presidente do Colégio de Psiquiatria da OM – faço notar, mais uma vez, que foi nesta qualidade que João Marques Teixeira foi apresentado na peça jornalística de 2 de Maio o que, naturalmente, lhe dá responsabilidades acrescidas.

 

(ii) Quanto às declarações de Pedro Nunes, importa relevar que o que está em causa não é criticar um psiquiatra que ajude alguém que está em sofrimento por causa da sua orientação sexual - seja ela homo ou heterossexual -, mas antes os aspectos relativos ao "tratamento" de uma não doença... a boa ou má praxis, portanto. 

 

Em suma, a homossexualidade não é uma doença, ponto. Não se pode falar em tratamento da homossexualidade, ponto. O que está em causa são questões éticas e deontológicas que vale a pena discutir, digo eu, tão somente porque estamos a falar de pessoas. E do sofrimento das pessoas, já agora.

 

PS: À cause de ça recordei-me do texto da Palmira sobre a drapetomania de Samuel Cartwright, o neologismo usado pelo médico norte-americano em 1851 para se referir à tendência "desviante" encontrada em muitos escravos negros que se manifestava numa "mania" de fuga. 

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