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jugular

dos coxos

Um dia, uma amiga torceu um pé e fez uma rotura de ligamentos. Andou meses de muletas. E começou a reparar nas pessoas de muletas. “Não imaginas a quantidade de gente que anda coxa”, informou-me. “Nunca tinha reparado. Parece que, de repente, o mundo se encheu de coxos”. O fenómeno, parece, sucede também com as grávidas: garantiram-me que reparam obsessivamente nas grávidas. Como se as ruas, os cafés, os restaurantes, os elevadores, as praias, os cinemas, teatros e museus se tivessem povoado subitamente de grávidas. As mesmas que lá andavam antes, claro, mas agora envoltas num halo de reconhecimento e solidariedade – um halo que diz: “Olha outra como eu”.

 


O exemplo valerá para alguém que começa a perder o cabelo (de repente só vê carecas) como para a adolescente cujas maminhas despontam ou o adolescente cuja barba assoma – só reparam no peito e nos queixos das outras e outros – como para mil e uma outras características ou afecções físicas que determinam a atenção a outros nas mesmas circunstâncias. Darmo-nos conta disso é darmo-nos conta da forma como funciona a percepção, ou seja, a nossa consciência e visualização da realidade, e de como está irremediavelmente condicionada pela perspectiva individual. O que isto nos diz, de uma forma tão simples, é que, mais que não existir um “ver” objectivo, só vemos o que nos interessa, aquilo que reconhecemos e em que nos reconhecemos.

Esta capacidade – ou incapacidade? – explica que quando somos jovens não reparemos nos velhos e que quando velhos reparemos tanto nos jovens: os jovens não se imaginam velhos (não conseguem, por mais que tentem, projectar-se nessa categoria) mas os velhos sabem muito bem o que é ser jovem (algo que por definição só plenamente se avalia quando já não é) e vivem na nostalgia da juventude perdida. A fenomenologia da percepção (roubando a expressão ao feliz título do livro de Merleau-Ponty, publicado em 1945 e que resumidamente demonstra como não existe algo a que se possa chamar “observação objectiva” e como tudo aquilo de que nos apercebemos depende de quem e do que somos) implica que, no limite, possamos ser absolutamente cegos em relação a coisas que estão à frente do nosso nariz.

Como os animais que num safari passam pelos carros cheios de turistas como se não existissem – porque neles não reconhecem nada que lhes interesse ou lhes diga algo de perceptível – passamos todos os dias por coisas, situações e pessoas das quais não nos damos conta. É altamente provável – virtualmente certo? -- que não só não nos demos conta de parte substancial do que se passa à nossa volta como não tenhamos, a maior parte do tempo, sequer a consciência de que isso assim é. O paradoxo disto reside no facto de, se o olhar e sentir individuais são indiscutível e objectivamente verdadeiros – e portanto, de algum modo, “a verdade” na sua dimensão mais radical --, não podem jamais ser declarados como universais ou, se se quiser, “objectivos”.

Neste óbvio e tão facilmente demonstrável paradoxo se fundamentam porém todos os conflitos, todos os desencontros, todos os choques, dos de trânsito aos civilizacionais, passando pela famosa incomunicabilidade relacional. Nenhum remédio, claro – a não ser o de, e sai outro paradoxo, tentarmos aperceber-nos da nossa incapacidade de nos apercebermos. Tentarmos admitir que vivemos em túneis de sentido e percepção, e que só podemos tentar imaginar o que é ser outro, o que é ver o que não vemos, o que é coxear quando não coxeamos (porque é tão fácil e rápido esquecer e voltar a não ver quando largamos as muletas). O que é – e isso é o mais difícil – um mundo em que não existimos, um olhar capaz de não nos ver.                                                                                                                                           (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 24 de maio)

 


 

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