a ditadura das coisas normais
Tão fácil como andar de bicicleta. A expressão é, parece, universal e parte de um princípio supostamente óbvio: andar de bicicleta é uma actividade tão tão fácil que serve de referência comparativa para actividades fáceis. Daqui se retira que alguém que não saiba andar de bicicleta se sinta irremediavelmente desqualificado e marginalizado. Está-se a rir, não é? Não acredita que haja alguém com duas pernas e dois braços e de um modo geral todas as funções locomotoras (e outras) que não saiba andar de bicicleta? Pois. Fique sabendo que há.
Além de mim, claro. Sim, estou a dizê-lo: nunca logrei aprender a andar de bicicleta. Tentei, se tentei. Comecei a tentar quando tinha uns sete ou oito anos e espalhei-me tantas vezes que desisti, para desconsolo do meu pai, que nunca acedeu aos meus pedidos de uma bicla daquelas com rodinhas laterais, como eu via aos outros meninos e que me parecia a solução para o meu caso – um caso de achar altamente improvável a ideia de alguém se aguentar em cima daquela coisa alta sem estabilidade nenhuma, apenas por uma deliberação de equilíbrio e o sortilégio da velocidade. Digamos que eu tinha uma objecção de princípio à irracionalidade da coisa – ou àquilo que assim me parecia. Diziam-me: “Não penses nisso”. Como, não pensar nisso? Mal me punham em cima da bicla eu só pensava em cair. E caía, claro. E quanto mais me explicavam que era a ideia – a obsessão, na verdade -- da queda que a tornava inevitável, mais eu obcecava.
À minha volta, toda a gente aprendeu com a maior das facilidades, para minha definitiva e cruel humilhação, e quanto mais aprendiam com facilidade mais me recusava a fazê-lo. Escusado dizer que nunca mais me apanharam em cima de uma coisa daquelas que não estivesse solidamente aparafusada ao chão – biclas de ginásio são minhas amigas – e que, embora me creia suficientemente crescida para lidar com esse medo, nunca me dispus a fazê-lo. Não saber andar de bicicleta tornou-se uma piada, uma espécie de símbolo da resistência à ditadura das coisas normais, das coisas que toda a gente faz e toda a gente é suposta fazer e cujo falhanço ou recusa faz de nós uma espécie de párias.
Há outros exemplos. Balões de pastilha elástica – também nunca consegui encher um para amostra --, assobiar em condições ou mergulhar de cabeça para uma piscina sem fazer um chapão lamentável. Mas estou em crer – que remédio, hã? – que falhar tão redondamente no que é banal implica aprender a duvidar do óbvio. E, de algum modo, a couraçar a individualidade. O que não nos mata torna-nos mais fortes, escreveu Nietzsche – o que não nos derrota faz-nos, mesmo quando perdemos, vencedores. Ao contrário do que pode parecer, não há mal nenhum em saber, e saber cedo, o que é ser diferente ou incapaz, nem em sentirmo-nos excluídos de uma irmandade de normais. Não há mal algum em saber cedo o que é ser posto a ridículo por não se ser capaz de fazer aquilo que para os outros é inquestionável. Não há mal algum em aprender a assumir idiossincrasias e a compreender as dos outros – e, desejavelmente, a mitigar a arrogância que nos poderia tomar perante quem não faz igual, não quer igual, não se sente igual. Não tem mal nenhum aprender cedo, e quanto mais cedo melhor, que aquilo que surge natural e evidente, tão evidente e fácil como andar de bicicleta, pode ser tudo menos isso, e que há gente para quem o ditado certo é exactamente o contrário.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 31 de maio)