A laicidade é um assunto de mulheres
Marieme Helie Lucas é uma socióloga argelina que fundou a rede internacional de solidariedade Women Living Under Muslim Laws e Secularism Is A Women's Issue. Marieme é igualmente a autora de uma crítica que considero indispensável ao discurso de Obama no Cairo.
Espero que o João não me considere uma das cínicas do costume, mas o artigo «Where are women and secularists in Obama's speech in Cairo?» toca nos pontos que me maçaram imenso mal ouvi o discurso de Obama, ex-libris de uma linha demasiado familiar para mim, aquela seguida pelo que Marieme, uma mulher de esquerda, chama a «esquerda cobarde». A mesma esquerda que fecha os olhos, em nome do multiculturalismo, a atrocidades cometidas em nome do direito à «diferença», na realidade atrocidades em nome da religião, como sejam, por exemplo, a arbitragem religiosa de questões familiares - que apenas leva à privatização de problemas sociais. O caso da juiza alemã que negou o divórcio a uma alemã de origem marroquina, vítima de violência doméstica, porque a sua suposta identidade cultural permite que o homem tenha «direito de castigo corporal sobre a sua esposa», não é uma caricatura é apenas um exemplo que explica, entre outras coisas, a ascensão da extrema-direita na Europa.
O fundamentalismo religioso, seja ele islâmico, cristão, hindu ou budista, é politicamente indissociável da extrema-direita mas quem vemos desculpar/menorizar esse mesmo fundamentalismo - se de outro flavour que não cristão, em particular islâmico -, é na maior parte das vezes a esquerda, que cai no mesmo erro de Obama neste discurso, um erro assente no que Amartya Sen denomina «singular affiliation», uma identidade pessoal definidade por aqueloutra religiosa em que a maioria dos indivíduos não se reconhece. Amartya Sen, numa conferência memorável que pode ser visualizada na íntegra no YouTube, denuncia esse erro como «Identity and Violence: The Violence of Illusion». A conferência partilha o título com um livro que nos explica o que devia ser óbvio para todos: a nossa identidade é, ou devia ser, um somatório de escolhas pessoais e não um rótulo imposto por outrem.
Considero que teria sido extraordinariamente útil a Obama na elaboração do discurso do Cairo ter lido o livro de Sen, em particular o parágrafo que diz
"... in disputing the gross and nasty generalization that members of the Islamic civilization have a belligerant culture, it is common enough to argue that they actually share a culture of peace and goodwill. But this simply replaces one stereotype with another, and furthermore, it involves accepting an implicit presumption that people who happen to be Muslim by religion would be similar in other ways as well."
Voltando a Marieme, esta refere-se repetidamente a uma «unholy alliance» entre os fundamentalistas de todas as religiões, traduzida, por exemplo, nas alianças na ONU entre o Vaticano e representantes das teocracias islâmicas em todos os assuntos que digam respeito aos direitos das mulheres ou à sexualidade. Pelo contrário, na mesma ONU a «esquerda cobarde» aceita passivamente resoluções como a recente em relação à blasfémia, quiçá com medo de ser apelidada islamofóbica ou anti-.Islão.
Como escreve Marieme, «As an example, Muslim fundamentalists have successfully induced Europe to label " Muslims" all immigrants and even the second and third generations of migrant descent from Muslim countries, regardless of their individual religious beliefs. A faith is slowly being turned into a "race" – the only historical precedent being the Jews during World War II
Assim, quem convida a esquerda para falar e opinar sobre o terrorismo islâmico ou quando estão em causa quaisquer leis sociais que afectem a chamada comunidade islâmica? Pois, num paradoxo que nunca conseguirei entender, convidam os auto-denominados «líderes» dessas «comunidades», sempre homens, sempre clérigos islâmicos, que vendem o estereótipo a que Sen se refere. E assim também «Governments [no Ocidente] are generally prepared to trade women's rights for social rest, – this is no surprise; but human rights organizations and the Left at large also trade with fundamentalists, in the name of tolerance and cultural relativism. They do so despite the outcry by migrant women (...) They do so despite the outcry of all secularists from migrant descent, believers and unbelievers alike. They do so for fear of being accused of 'Islamophobia', a concept coined by fundamentalists in order to silence dissent. As if fundamentalist neo fascists were the only legitimate true representatives of 'Islam', and of all citizens whose parents once migrated from Muslim countries.
Numa altura em que os resultados das últimas eleições europeias deveriam obrigar a esquerda a repensar-se, dever-se-ia reflectir sobre questões de identidade e laicidade, de facto uma questão de mulheres porque é sobre os direitos das mulheres que os fundamentalistas de todos os flavours assestam baterias. Quando a xenobofia cresce na Europa, urge acima de tudo dar força às ignoradas vozes seculares dos chamados países islâmicos que, como o caso recente no Paquistão ou mesmo as eleições de domingo no Líbano ilustram, representam de facto muito mais pessoas do que a maioria da sociedade ocidental pensa.
Como termina outro artigo de Marieme que vale a pena ler, «The enemy of my enemy is not my friend: Fundamentalist Non State Actors, Democracy and Human Rights»:
«Progressive forces in Muslim countries warned the world for the past few decades already, regarding the fascist nature of fundamentalism. (...)
Give us visibility. Give us a voice. We are the alternative».