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FED e zona euro

Depois da recente conferência de imprensa da Reserva Federal, não vejo ninguém discutir as consequências para a Europa do fim anunciado do programa de quantitative easing. Uma das formas de combater uma crise de dívida é através do que se chama "repressão financeira". Um mecanismo caracterizado por manter o nível da curva de taxas de juro artificialmente baixo, fazendo assim uma transferência de riqueza dos credores para os devedores.

 

As políticas extraordinárias da Reserva Federal não tinham como destinatário a Europa. No entanto, esta região beneficiou amplamente do que foi feito, como aliás foi visível no nível historicamente baixo que as taxas de juro dos países core da zona euro atingiram durante os últimos meses. Estas taxas de juro artificialmente baixas permitiram a estes países beneficiar do programa de quantitative easing, permitindo às autoridades alemãs colher os frutos sem ter de sujar as mãos, ao mesmo tempo que continuava a rasgar as vestes sempre que alguém na Europa sugeria que o BCE deveria estar a fazer a mesmíssima coisa.

 

Com a economia norte-americana aparentemente no bom caminho (desemprego em queda, mercado imobiliário em recuperação, défice orçamental em contracção superior às melhores expectativas, um PIB cuja discussão é se está a crescer a 2% ou 3% ao ano), é apenas natural que a FED inicie a sua estratégia de saída. O que são, claro, péssimas notícias para a Europa. Já, aliás, bem visíveis na subida considerável das taxas de juro em todos os países europeus.

 

Tentando resumir: a zona euro tem um banco central que está, na prática, proibido de realizar expansões da massa monetária; um conjunto de governos que assinou um pacto orçamental, que implica austeridade para todos - em diferentes graus, mas para todos - durante os próximos largos anos; uma economia privada ainda demasiado alavancada que, em muitos casos, nem sequer iniciou o necessário processo de menor utilização de crédito; um sistema financeiro mais capitalizado, mas ainda muito dependente do que será o andamento da economia. Um belo cocktail, portanto.

 

Sem o analgésico da FED, receio bem que venhamos a descobrir bem depressa que os elogios que toda a gente andou a fazer a Mario Draghi em 2012, devessem ter ido, não para este, mas sim para Ben Bernanke. Até à semana passada.

Limite

É dos livros de história que as crises económicas são mais severas quando provocadas por uma crise financeira. Quando juntamos a isto uma Europa que escolheu, e continua a escolher, não ter os instrumentos adequados para lidar com uma crise desta dimensão, não é difícil perceber porque é que o continente europeu está mergulhado na segunda recessão desde 2008.

Ainda assim, há uma enorme diferença entre a periferia e o centro da zona euro. As economias periféricas, reféns de atrasos crónicos com causas estruturais que não se revertem em décadas, quanto mais em anos, têm como única receita dada pelos seus credores (e aplicada entusiasticamente por governos como o nosso), empobrecerem. E quanto mais rápido, melhor.

Acontece que isto implica, como temos visto em Portugal, muitas coisas que só um estado de anestesia geral permite que aconteçam. Desde atropelos consecutivos à constituição, ao ataque cerrado às franjas mais desprotegidas da sociedade (como no caso do complemento solidário para idosos ou o RSI), ou à tentativa deliberada de colocar grupos uns contra os outros (funcionários pública e pensionistas). Exemplos aos quais podemos juntar uma dose de incompetência na gestão do país que ultrapassa as expectativas mais pessimistas.

Quando se coloca tudo em causa, excepto o dever de pagar as dívidas aos nossos credores, aumenta-se seriamente a probabilidade de, mais tarde ou mais cedo, decidirmos, simplesmente, não pagar. Não perceber isto, que o necessário processo de ajustamento tem de ser feito com bom senso, é trágico. Um dia destes, arriscamo-nos mesmo a descobrir qual é o limite para os sacrifícios.

Para onde foi o bom senso?

Esta sensação estranha de o bom senso ter desaparecido de circulação paralisa, quando devia fazer o oposto. 

Temos o lado que argumenta ser este o único caminho, mesmo que não se descortine um rumo que não seja apenas a destruição de tudo o que cheire a serviço público ou proteção básica aos desfavorecidos. Uma mistura perigosa de fé num tal de mercado utópico que encontra, no desejo de desregulamentação e selvajaria, os desejos de vingança de uma direita que nunca perdoou nada do que foi conquistado pelos portugueses em democracia. 

Do lado oposto também encontro o medo. Desde as proclamações de independência nacional, advogando o abandono imediato do euro, como se esse não fosse um passo suicida na sociedade actual portuguesa, à exigência de rasgar tudo o que são os acordos que livremente assinámos, sem explicar que modelo de financiamento - e sobrevivência - defendem para para o país. 

O comum destes dois lados é ser impossível dialogar com qualquer um deles. A razoabilidade que é necessária para o fazer tem vindo a ser cada vez mais minada, muito pela actuação de um governo que, convencido de possuir uma qualquer missão salvífica, continua a alienar, um a um, vários sectores da sociedade portuguesa. 

Teremos de ser nós a por cobro a isto. Ou, não tarda muito, qualquer réstia de bom senso vai soçobrar ao fanatismo que domina actualmente o discurso público.

I'm only happy when it rains

O sentimento dos mercados não precisa de muito para mudar, já o sabemos. Numa Europa em recessão, presa por uma ortodoxia transformada em lei pelo pacto orçamental, era mais do que óbvio que alguma coisa tem de mudar para que o estado de bovinidade visto nos mercados de dívida soberana tivesse alguma sustentabilidade. Ou seja, os analgésicos do BCE (LTRO, OMT) funcionam, aliviam, mas não resolvem. Aliás, no caso europeu tendem a ser perversos, ao diminuírem a urgência das alterações estruturais na União (mutualização, reforço das capacidades do BCE, entre outras), essenciais à sua sobrevivência.

Hoje Draghi, ao mesmo tempo que se comprometia a manter políticas monetárias convencionais acomodatícias pelo tempo que for necessário (com muito pouca utilidade nesta fase), surpreendeu ao criticar abertamente a posição da comissão europeia em flexibilizar as metas de défice orçamental de vários países. Ora, isto mostra que, mesmo depois dos falhanços sucessivos de um foco exclusivo nas políticas orçamentais restritivas, continuamos a não entender nem as causas desta crise, nem os efeitos nocivos da resposta que tivemos até agora.

Curiosamente, a esperança reside nos mercados financeiros. Confrontados com uma Europa que insiste em não perceber que está a condenar a dívida soberana de vários dos seus membros a uma insustentabilidade certa, começam a acordar para os riscos que aí vêm.

Dado que o sofrimento das populações não é especialmente interessante (sendo até motivo de orgulho para governantes como o nosso primeiro-ministro), pode ser que uma desvalorização nos mercados de dívida soberana (até pelo impactos que gerará no sistema financeiro) faça acordar os líderes europeus deste pesadelo a que insistem em condenar-nos. Venha a chuva.

Miopia

Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.

- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.

Mário-Henrique Leiria, Noivado

O estado de complacência que podemos ver nos mercados, relativamente à dívida dos países periféricos pode ter muitas explicações. A minha favorita é a miopia. O aumento de liquidez, provocado pela emissão contínua dos principais bancos centrais - com a irónica excepção do BCE -, apesar de ter muito pouco impacto na economia real, tem um impacto significativo em termos de mercados financeiros. O dinheiro tem de ir parar a algum lado, afinal.

No entanto, olhando para os números das economias periféricas, nada faria antecipar este contínuo apetite pela dívida destes países. A estratégia de controlo de contas públicas, através de reduções drásticas dos défices causados pela crise financeira global de 2008, teve como resultado uma contracção da actividade económica muito maior que a esperada, fazendo com que a redução desses défices tenha sido muito menor que o esforço de corte de despesa ou aumento de receita que foi imposto à economia  A trajectória da dívida pública, tanto por se registarem défices mais altos como por termos sofrido quedas de PIB mais intensas, tem sido revista sucessivamente em alta. Considerar que as contas públicas dos países periféricos são hoje mais sustentáveis do que antes da aplicação dos memorandos é, essencialmente, do domínio da fé. O que nem é muito estranho, dado serem tipicamente as mesmas pessoas que acreditam na vinda, sempre adiada, da fada da confiança.

 Mas mais do que as contas, há uma dimensão que os mercados ignoram de forma sistemática: a social. Muito mais assustadores do que os números do défice e da dívida, são os do desemprego. Em especial do desemprego jovem, em níveis obscenos no Sul da Europa. Dezenas de milhões de pessoas cada vez mais sem rede e sem perspectivas, a quem é dito que empreendam, ou emigrem ou que tem de ser assim. No fundo, que a culpa é delas. Ninguém sabe quais serão os efeitos a prazo desta - e estou a medir as palavras - verdadeira tragédia. E não a vejo, de forma alguma, sequer considerada neste optimismo das yields que contrasta de forma tão gritante com a desesperança que sentimos todos os dias à nossa volta.

A miopia, que me acompanha desde miúdo, até pode gerar acasos que redundem mais ao menos na mesma coisa, como no texto do Mário-Henrique Leiria. Não é, certamente, o caso deste Bernardo que nos querem impor.

A voz do dono

A decisão do Tribunal Constitucional não criou, claro, problema nenhum. A história da carochinha que Passos Coelho tentou ontem vender ao país é desmontada de forma muito simples, bastando para isso olhar para o desastre que têm sido as sucessivas execuções orçamentais. Os 2 pontos percentuais de derrapagem orçamental do ano passado, mesmo com medidas inconstitucionais, mostram que este governo não precisa de ajuda para falhar.

O que nos faz, ou fará em breve, "bater na parede" é a insistência numa política (agora factualmente) errada, aplicada ainda por cima por entusiastas que perante sucessivos falhanços apenas têm como resposta insistir e aumentar a dose anterior.

A ver se nos entendemos: é claro que é necessário equilibrar as contas públicas portuguesas. Tão claro, aliás, como ser - na ausência de soberania monetária em que vivemos - impossível fazê-lo num contexto recessivo, quase todo ele auto-infligido.

Defender a manutenção no euro e o equilíbrio das contas públicas portuguesas implica que consideremos desejável (e não um anátema) renegociar o actual programa de ajustamento. Encontrar formas inteligentes de reduzir o défice, impedindo que os sucessivos cortes de despesa e subidas de receita sejam apenas um sorvedouro com gravíssimas consequências sociais. Aproveitar os resultados deste programa para mostrar porque é que o ajustamento tem de ser feito de forma diferente.

É verdade que dependemos da boa-vontade dos nossos parceiros. Por isso mesmo, cumpre-nos demonstrar o falhanço do programa, das suas sucessivas revisões e da sua aplicação. Mas, claro, quando se olha para a troika como a "voz do dono", nem se começa a questionar se o facto de estar um abismo ali mesmo à frente nos deveria fazer pensar noutros caminhos. A expressão "defender Portugal", que nem me é particularmente simpática, vai-se tornando mais actual que nunca.

WTF, Europa?

O tempo da complacência tem, cedo ou tarde, de acabar. A actuação do BCE em 2012 retirou o risco de colapso eminente, mas não alterou nenhum dos problemas de base da zona euro, nomeadamente as questões de falta de soberania monetária identificados aqui pelo João.

Ainda assim, as decisões que rodeiam o resgate a Chipre voltam a mostrar uma União Europeia que insiste em olhar para o problema como uma série de casos isolados, com cada país concentrado em olhar para o seu umbigo e não para o projecto comum que partilhamos. Face a tudo isto, a novidade do imposto sobre depósitos é apenas uma anedota que vem confirmar a falta de vontade da Europa em criar soluções reais e integradas. Uma anedota plena de irresponsabilidade, verdade. E novidades?

Resumindo

1) Num contexto recessivo, causado por uma menor utilização de crédito por parte do sector privado, não há austeridade que equilibre as contas públicas.

2) Insistir em gerir um país como se fosse um orçamento familiar tem o seu quê de alucinado.

3) O problema de excesso de dívida na generalidade dos países desenvolvidos é bem real. Mas a dívida pública não representa sequer a maior parte da dívida total dos países da periferia. Isto é ainda mais verdade se olharmos para os anos de início da crise, antes da intervenção dos governos para evitar uma nova grande depressão na sequência da crise financeira global.

4) O foco exclusivo na componente pública da dívida revela essencialmente um preconceito ideológico: tudo o que é público é inerentemente mau e deve ser combatido. As análises de sustentabilidade da despesa pública, feitas num contexto recessivo como este, enfermam desse mesmo preconceito e não podem, como é óbvio, ser levadas a sério.

5) Promover um ajustamento rápido das contas públicas neste contexto é ignorar o funcionamento dos estabilizadores automáticos. Uma desalavancagem simultânea de todos os agentes económicos tem como resultado o que temos visto: uma recessão em aceleração e sem fim à vista, e uma incapacidade total em equilibrar as contas públicas.

6) Resta a inevitabilidade. Dado que dependemos dos nossos credores não temos alternativa. Sendo isto verdade, pelo menos se pretendemos permanecer na zona euro, nada justifica o entusiasmo do nosso governo pela austeridade, versão hardcore. O problema português não poderá ser resolvido sem uma alteração das políticas e arquitectura europeias, em especial deixarmos de ter esta bizarria de ser o único bloco económico sem um banco central. Lutar por estas alterações é da maior urgência.

7) Isto porque insistir numa política errada, mas da qual não podemos fugir, arrisca-se seriamente a juntar à destruição da economia a destruição da democracia.

Continuem a mandar postais

Vou vendo por aí tentativas desesperadas de justificar o injustificável: o desastre destes quase dois anos de governação deve ser explicado não por vontade própria, mas pela necessidade de ganhar a tal credibilidade externa, pondo em prática para isso uma série de políticas que, de racional, nunca tiveram nada.

Portanto, se eu concordar com um plano que não faz sentido nenhum e o implementar cheio de vontade (indo inclusivamente além do mesmo), destruo o país, mas ganho credibilidade. Está bem.

Basta. #2deMarço

Uma acção que contradiz directamente a campanha e programa eleitoral com que este governo foi eleito. Um constante elogio do desemprego e da probreza, como se estes tivessem características redentoras. Uma lógica divisionista como forma de atacar a solidariedade que deve unir uma sociedade. Um apelo ao pior do passado, no desejo inconfessado de um Portugal pobre, humilde e resignado. Uma obsessão com as finanças igualada apenas pela capacidade de falhar todas as metas. Uma Europa que insiste em remédios não apenas ineficazes, mas contraproducentes.

Cada um terá as suas razões. Estas são as minhas.

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