a Eputeia
"Cale-se de Alexandre e de Trajano (...) que eu canto o peito ilustre lusitano, a quem Merkel e Draghi obedeceram". Piadinha tosca, esta, mas é preciso acompanhar as tendências, sobretudo as de mau gosto, que são sempre as que vingam. E depois há as eternas, as clássicas, as que nunca passam de moda. Usar a História, essa meretriz universal quase tão rameira como Babilónia, à medida dos nossos desejos, é uma delas. O nosso PM não desilude. Ontem, na inauguração do World of Discoveries, chamou-a e ter-lhe-á dito, como o coronel Jesuíno, "se prepare que eu vou lhe usar". And so he did. Lá evocou a nossa epopeia marítima para ultrapassar a crise, a necessidade de "recordar o espírito cosmopolita que nos levou a todas as partes do mundo" e que "estamos agora à procura de poder mostrar a todo o mundo que não precisamos de uma tutela externa". Retive a perspicácia do "espírito cosmopolita" e a acutilância do "à procura de poder mostrar." Isto, na minha terra, chama-se conversa de ir a um certo sítio. Na voz de um chefe de governo, não sei bem o que se poderá chamar.
Gostava de ouvir o discurso completo, certamente haverá por lá apelos à garra (que raça é palavra infame, sobretudo desde que aquela personagem do nosso Panteão a utilizou num 10 de junho já muito - ou nem por isso - distante) desses tempos, ou apreciações sobre os dons visionários de líderes e monarcas, elogios à mobilização coletiva em torno do projeto comum dos "Descobrimentos", etc. Pensando bem, nem é preciso ouvir, que a ladainha repete-se. Em 1986, o decreto/lei que criou a Comissão dos Descobrimentos para comemorar a viagem de Bartolomeu Dias evocava "a grave crise interna" que precedera "os descobrimentos de há 500 anos", embora tenha decorrido mais de um século entre a dita (de 1383-85) e o feito de Dias (em 1488). Hoje, vislumbram-se novos assédios à memória. Só não são mais descarados porque lhes falta conhecimentos. Mas tudo nos devidos conformes, ou seja, tudo tratado com pinças na evocação do tal "espírito cosmopolita" e pouco mais, quando éramos poupadinhos e modestos. Depois, já se sabe, começámos a viver acima das nossas possibilidades (deduzo) e lá vieram os encerramentos das feitorias de Antuérpia e os défices crónicos da Fazenda Real. Não havia troika mas havia banqueiros que cobravam juros astronómicos e mantinham os nossos monarcas num garrote. Isso agora não interessa nada. A Eputeia usa-se e larga-se, e volta-se a usar quando é preciso.
[Momento zen do PM a olhar para cenas (presumivelmente, o interior de uma nau, fidelíssima e magnífica reconstituição com belo soalho, palhinhas, beliches e ângulo reto entre o chão e as paredes, típico do interior de um navio). Esqueceram-se foi de acordar o madraço do marujo, que ressona indiferente. Ou então agoniza, possivelmente já cadáver. Está de calças e parece envergar sapatos de ténis. Uns visionários, estes lusos nautas. (foto DN).]