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A lista de Pandora

Ainda não li a proposta de lei respeitante à "criação de um registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores" com "objetivos de política de justiça e de prevenção criminal impostos pela Convenção de Lanzarote, que prevê a recolha e armazenamento de dados relativos à identidade e ao perfil genético de pessoas condenadas pelas infrações penais nela previstas". O comunicado do Conselho de Ministros diz-nos ainda que "proposta de lei surge, assim, inserida no panorama europeu, sendo inspirada nas experiências consolidadas do Reino Unido e de França, que criaram sistemas de registo de condenados com obrigações de comunicação periódica que permitem o controlo e a monitorização de deslocações ao estrangeiro e procuram prevenir o contato profissional destes agentes com crianças. Ambos os sistemas foram objeto de análise pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em cinco acórdãos, tendo este decidido da sua conformidade com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente no respeito pelo princípio da legalidade e no respeito pela vida privada e familiar". Como não li é difícil dizer se a compatibilidade legal que o comunicado nos quer fazer crer existir é verdadeira. Vou deixar, por isso, esta questão de lado. Vou apenas centrar-me no direito e na Constituição.

 

Continuo a achar que o direito é uma combinação política de moral e de técnica. Ou seja, modos de dever fazer e de dever agir, filtrados por modos de decidir comunitariamente. O político é, por isso, o decisivo. A moral e a técnica existem autonomamente, como categorias sociais próprias, criadas e desenvolvidas por membros e grupos de uma dada comunidade, e o Direito aparece, de quando em vez (infelizmente, cada vez mais) como expressão da decisão de qual a moral e qual a técnica que passam a ser consideradas do interesse de toda a comunidade. É por isso sempre útil lembrarmo-nos que o legislador ordinário, criatura partidária e política, utiliza a sua transitória capacidade para fazer política enquanto faz direito. Isso é especialmente verdade quanto à lista de condenados por crimes sexuais contra menores. A propósito de um tema que se quereria "acima da política, em nome do superior interesse da criança", como hoje ouvi a alguém, creio que no Forum TSF, é evidente que se está sempre na area política.

 

A lista, promovida e defendida pelo Ministério da Justiça e sua Ministra, é um bom exemplo de securitismo e de manipulação das pulsões mais básicas do ser humano. Entre a ignorância, o medo e a curiosidade mórbida, a proposta de lei alimenta-se de confusões entre pedofilia e abuso de menores e de pessoas que vivem mais tranquilas - ainda que não mais seguras, passe o paradoxo - sabendo que há uma lista onde consta quem foi condenado por ter cometido crimes sexuais contra menores. 

 

Há interesse em saber onde estão estas pessoas, estes condenados que pagaram juridica e socialmente pelo seu crime? Há, claro. Por uma razão e uma única razão: o perigo de reincidência. Desconheço qual a taxa de reincidência de abusadores de menores, mas ainda que seja alta, a partir de que percentagem está justificada a possibilidade de passarmos de dados soltos existentes em diversas bases de dados para a criação de um registo  de identificação criminal deste tipo de condenados? Admitamos que a taxa de reincidência é tal que justifica a criação desse registo - o que leva à questão de por que não criamos idênticos registos para outros tipos de criminosos com taxas de reincidência iguais ou superiores e em que o bem protegido seja também de relevo - o problema não seria ainda a criação desse registo, mas quem a ele poderia aceder. Um acesso público ou escassamente restringido equivaleria a abrir a caixa de Pandora dos vigilantes e linchadores, um acesso altamente restrito poderia satisfazer as vantagens de prevenção policial sem contudo colocar em causa as liberdades fundamentais do ex-condenado. O problema estaria pois em assegurar esse acesso restrito, algo que, num mundo aberto e digital, é cada vez mais difícil.

 

Assim, temos num prato da balança, (i) o ónus de demonstração da taxa de reincidência e o ónus de justificação de que essa taxa exige um registo nacional como forma de melhorar a prevenção e ainda (ii) o ónus de protecção desse registo de todos aqueles que não tenham funções de prevenção. Acresce, depois, o ónus de garantir que aqueles que têm acesso apenas por razões funcionais de prevenção não passam a informação a quem a ela não devia aceder. É muita coisa, muito difícil, muito controversa.

No outro prato da balança temos a privacidade, a dignidade, a presunção de inocência de pessoas que tendo cometido um crime e mesmo que tenham contra si uma taxa de reincidência alta (por demonstrar) não devem ter o Estado a facilitar o julgamento prévio no pelourinho, algo que o menor rastilho emocional, o menor equívoco pode fazer atear. 

 

Daí que ao ler que os pais podem ter acesso, ainda que indirecto, ao registo agora vertido em proposta de lei ocorram-me duas grandes preocupações:

1. por que razão devem os pais ter acesso indirecto? Porque já ocorreu algo? Temem que venha a ocorrer? Se já ocorreu então isso já é matéria de polícia e os pais não têm que ter acesso ao registo, mas ao processo, nos termos gerais em que sempre poderiam ter. Se ainda não aconteceu voltamos ao problema da justiça privada por antecipação à mercê de todos os temperamentos e emoções.

2. mesmo que não houvesse acesso indirecto para os pais a simples existência do registo, num país em que o segredo de justiça é uma piada, é assustadora e deve ser um argumento forte no juízo de custo/benefício desta medida.

 

Devido a estas duas preocupações, politicamente sou contra este registo, preferindo que num caso concreto a polícia tenha que fazer investigação com os elementos disponíveis nas várias bases de dados hoje existentes (para além do normal trabalho de investigação policial). Acho mesmo que ser politicamente a favor desta medida, com todas as dúvidas e preocupações que levanta, demonstra uma clara preferência política pelo afagar das mais básicas inseguranças das pessoas, mesmo quando elas se revelam justicialistas, perigosas e potencialmente destrutivas para pessoas que já pagaram pelo crime que efectivamente cometeram. Prefiro viver com a perda de prevenção que o registo permitiria do que com as consequências da histeria colectiva e de uma justiça privada por antecipação. E esta é uma discussão política.

 

Além de tudo isto, pelas mesmas preocupações, quando colocados os dois interesses de relevância constitucional na balança, acho que o juízo de proporcionalidade dita que um tal registo é desproporcional quanto ao efeito que pretende face aos prejuízos que podem implicar. Por isso, parece-me inconstitucional.

 

O Minority Report é ficção. Não nos esqueçamos disso.

 

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