a rtp, o provedor, o gonçalo e o sentido de humor (ena, fez verso)
o provedor do espectador da rtp aceitou a queixa da plataforma feminista maria capaz sobre a promo da rtp da cobertura das comemorações da república e pôs no ar no sábado a peça sobre o assunto.
estando em causa uma promo da rtp que a direcção respectiva aprovou (é assim que funciona) e depois decidiu retirar devido aos protestos, o provedor entendeu que as partes a serem ouvidas deviam ser uma representante da maria capaz (rita ferro rodrigues) e o tipo que faz as promos, um tal de gonçalo morais leitão.
ou seja, o provedor, que aliás se eximiu de tomar qualquer posição sobre a questão, resumindo-se a uma conversa anódina sobre as obrigações da rtp como serviço público, sem sequer opinar sobre a promo em questão e a sua admissibilidade ou não, nem sequer dizendo que a promo foi retirada (quem veja a peça sem o saber fica sem perceber até quase ao fim que isso sucedeu e muito menos porquê) e o que acha desse facto, achou que não valia a pena incomodar a direcção da rtp, tratando o caso como se se tratasse de uma mera questão de “gosto” ou de “humor” ou falta dele.
é óbvio que se se tratasse de uma promo que apelasse à xenofobia ou à discriminação racial ou com base na orientação sexual (aliás basta ver como a rtp se apressou a fazer um comunicado sobre o caso rodrigues dos santos/quintanilha) o provedor acharia que a direcção da rtp tinha de ser ouvida, porque a gravidade do assunto assim o determinaria. mas era só uma promo que banalizava o assédio a que as mulheres são, e desde crianças, submetidas nas ruas portuguesas; era só uma promo que certificava que qualquer mulher, como diz o rapaz das promos, “gosta de ser elogiada”, ou seja, gosta que perfeitos desconhecidos a tratem por tu na rua a comentar-lhe a aparência e se está boa de comer ou nem por isso.
aliás, se não gostar, depreende-se da mundividência do tal gonçalo, é porque tem alguma coisa de errado. Porque, como ele diz, “é preciso encarar a vida com humor”. gonçalo, não imaginas como tens razão. não tens a menor ideia (se tiveres alguma, coisa de que se duvida atentando à tua prestação) do sentido de humor, entre outras coisas, que é preciso ter para lidar com idiotas como tu e não passar a vida à estalada. Idiotas a quem não passa pela cabeça que pode ser possível que uma mulher não goste de sentir que os homens acham que se ela sai à rua é porque está disponível para qualquer avanço sexual, e que a sua função na vida é ser 'boa' ou não ser nada. Idiotas a quem não passa pela cabeça o que miúdas de 10, 11, 12, 13, 14 anos são obrigadas a ouvir diariamente de homens com idade para serem pais e avós, e o que isso condiciona a forma como lidam com o seu corpo, com a sua autonomia e com o espaço público. idiotas que acham que fazer claro desde a infância às mulheres que na rua estão sempre em perigo de serem abordadas de forma grosseira, humilhadas, perseguidas e expostas é uma coisa divertida, com a qual é giro fazer piadas. idiotas incapazes de empatia, imaginação, de sair do par de calças mentais em que entraram mal abriram os olhos e que não conseguem por um segundo colocar-se no lugar de quem tem de lidar com essa incapacidade 24 horas por dia a vida toda.
idiotas que, aposto, se escandalizam com as burqas e os niqabs (tens todo o ar, gonçalo, de te achares moderno e quiçá defensor dos direitos das mulheres, mas as dos países árabes, claro) e a quem não passa pela cabeça que as burqas e os niqabs foram decretados lá naquelas paragens por motivos que têm a ver exactamente com o que desculpa, banaliza e defende o assédio de rua: a ideia de que a rua é dos homens e que as mulheres sempre que nela se aventuram arriscam ataques sexuais se não convenientemente recatadas e acompanhadas por um dono.
idiotas que, aposto, se se tratar da maninha, da mãe ou da namorada ou da mulher ou da filha acham inadmissível que alguém lhes diga aquilo que acham tanta graça, e não concebem que haja quem não ache, que os homens digam às outras mulheres todas.
gonçalo, bem sei que não és capaz de perceber mas as mulheres não existem para os homens, não fazem depender toda a sua valia do que os homens acham do aspecto delas e não querem ouvir de qualquer grunho que passe por elas na rua o que pensa do corpo dela ou o que gostaria de fazer com ele. um elogio, gonçalo, é uma coisa muito diferente de um assobio de um desconhecido, de uma boca de um desconhecido, de uma chusma de ordinarices de desconhecidos. um elogio pressupõe respeito e comunicação entre iguais, e o interesse de ouvir como de dizer; pressupõe que as pessoas ou se conhecem ou, no caso de não se conhecerem, se abordam com educação; um elogio não é uma agressão, uma exibição de suposta virilidade, uma imposição e uma afirmação de poder.
toda a gente gosta de elogios, nisso tens razão; só te falta perceber o que é e o que não é um elogio. só te falta perceber que uma mulher tem o mesmo direito que tu ao espaço público, a andar na rua sem ser incomodada; só te falta perceber que tem o mesmo direito que tu a ter cara de parva, ou a ter o rabo gordo ou usar roupa foleira e não ter de o ouvir na rua de todos os homens com quem se cruza. só te falta perceber tudo, portanto.
o mesmo, gonçalo, vale para a direcção da estação que aprovou a porcaria de promo que fizeste e o provedor que achou que a queixa não merecia que se incomodasse a direcção da estação ou sequer que ele próprio se dignasse a tomar posição sobre ela. neste ano da graça de 2015, num país europeu que se quer crer civilizado, este é o respeito que as mulheres vos merecem. não é novidade, e cansa ter de o anotar e repetir, e ter sentido de humor para ainda conseguir rir da vossa burrice e insensibilidade, porque, garanto-te, rimo-nos de ti e da tua conversa. porque és ridículo, gonçalo. és limitado, gonçalo. és tonto, gonçalo. o que nos rimos quando dizes 'disruptivo' e 'challenger', deus. que parolo. e, naturalmente, não te importas que to diga assim sem pudor no espaço público, sem nos conhecermos de nenhum lado, como sucede às mulheres ouvir na rua, sem cerimónia, o que perfeitos desconhecidos pensam delas. tenho a certeza de que achas piada. desculpa não dizer nada do teu rabo mas não deu para ver na peça. para a próxima vê se te viras de costas para podermos apreciar e opinar.
ver peça do provedor aqui.