argumentações abortivas
tou comó joão miguel: com a falta de massa com que o país se debate, que é lá isso de pagar abortos por vontade da mulher às desavergonhadas que engravidaram sem querer. aliás, mesmo que estivessemos a nadar em narta: abortar, como diz o joão miguel, 'com o dinheiro de todos, 'incluindo daqueles que entendem que o aborto é a morte de um ser humano' é uma coisa tão inaceitável que nem tenho palavras.
a não ser estas: siga-se esta lógica com tudo. assim, quem apareça com cancro do pulmão ao fim de anos a fumar dois maços por dia faça favor de pagar do seu bolso os tratamentos, que com o dinheiro dos anti-tabagistas não pode contar nem alegar que não leu nos maços 'fumar mata'. e a malta com cirrose e a precisar de transplantes do fígado por ter andado a emborcar tonéis de vinhaça e visquí? é ali no guichet do pronto pagamento, ala que o sns é só para quem passa com aproveitamento no exame de religião e moral. cancro da pele? quê, não sabia o que estava a fazer quando trabalhou para o bronze? tá com um avc? por acaso o médico não lhe disse para fazer exercício e deixar de comer gorduras e fritos? azarito. se dói grite. mas não muito alto que não queremos berreiros ou outras imoralidades no espaço público pago com os nossos impostos.
e o senhor, estrapicalhou-se todo no pára-brisas porque ia a conduzir sem cinto? pois temos pena. hiv? quê, andou a coisar sem preservativo? ou o preservativo rompeu-se com o entusiasmo? ou deu um chuto com a seringa de outro? olhe, ficasse em casa a ver a novela e a fazer crochet. se quer tratar-se arranje dinheiro, se não tem encomende a alma ao criador e se andar por aí a infectar mais gente não faz mal porque esses também deviam ter ficado em casa, que não se constipavam. o mesmo vale para o cancro do colo do útero, sifílis, etc. tudo o que meta sexo, aliás, à parte as criancinhas que daí resultem, para o multibanco.
ma não se pense que isto é só para o sns. foi à praia num dia de bandeira encarnada e meteu-no no mar? deve pensar que vamos gastar dinheiro a salvá-lo, não? caiu de um telhado de um prédio porque resolveu mudar as telhas sem precauções e agora quer que a gente lhe conserte os ossos? pois pensasse nisso. andou de mota sem capacete ou esqueceu-se de apertá-lo? atravessou fora da passadeira? despistou-se em velocidade excessiva? chocou por ter passado um vermelho? apanhou uma pneumonia porque não usou cachecol?
a cada entrada no hospital público, o paciente ou acidentado deve ser interrogado para averiguar da sua responsabilidade no seu estado. consoante os valores morais, hábitos e critérios de quem o interrogue, pode receber tratamento 'grátis' ou não. parece óbvio, não é?
agora a sério mas só um bocadinho: não tenho nenhum problema à partida com introdução de taxa moderadora no aborto, mas convém lembrar que há vários tipos de aborto: há abortos espontâneos, abortos por malformação (que correspondem em regra a interruções de gravidez desejadas e ocorrem geralmente num estádio adiantado da gravidez), abortos para salvar a vida da mulher (no caso de gravidez ectópica, por exemplo), abortos por violação. a introdução da taxa moderadora advogada pelo joão miguel tavares é para todos ou só para os abortos 'por vontade da mulher'? e, já agora, sendo a licença sempre decidida por médicos (não é um automatismo), se, como me lembrou hoje um amigo por acaso de direita mas não destituido lá por isso de miolos, a malta anti-aborto que passa a vida a dizer que a interrupção da gravidez é um 'horrível trauma' para quem a faz e 'deixa sequelas para a vida', não está a ser um nadica contraditória quando se põe aos gritos por ser possível tirar licença por causa da intervenção? decidam-se lá: é é uma experiência pavorosa ou é uma coisa sem problema nenhum. não dá é para ser uma coisa e outra ao mesmo tempo.
não levem a mal o conselho, mas não era mau se antes de falar sobre estas coisas pensassem um bocadinho. só um bocadinho. é que dizer, como o joão miguel diz, que 'há oito anos, uma mulher que abortava podia ir parar à prisão. Hoje, ela tem os mesmos privilégios de quem deu à luz', é, como dizer, tão revelador de curto-circuito que dá dó.
e, porque o joão miguel vai perguntar porquê, eu explico. primeiro, porque falar de 'privilégios' de quem deu à luz é paternalista -- qual o 'privilégio', a isenção de taxa moderadora? a existência de uma licença de vários meses? -- segundo porque, como é óbvio, o que está em causa é a situação médica. uma mulher que deu à luz tem baixa para se restabelecer do parto e para cuidar do bebé se entender gozá-la: uma mulher que abortou tem baixa, como qualquer pessoa submetida a uma intervenção médica, se o médico entender qe precisa dela.
comparar uma coisa e outra é pura desonestidade moralista com vista a estabelecer uma dicotomia: a de que a mulher que deu à luz merece ser recompensada face à que aborta. o que tu dizes, joão miguel, é que consideras imoral que a última, se já não vai para a prisão, seja tratada como se não tivesse feito nada de mal. tens todo o direito de pensar isso. o que não tens de certeza é o de afirmar que o que defendes é 'um meio termo'.

