contras & contras
Resisti estoicamente, durante os últimos dias, a escrever alguma coisa acerca das "praxes" (bocarras no Facebook não contam). Não é por achar que se trata de um assunto pouco importante. É mesmo aversão, irritação dérmica, alergia, ao assunto, que me esbate o equilíbrio e me tolda o entendimento. Ainda bem que não sou de Direito, e ainda menos, juiz. Se o fosse, pediria dispensa para julgar casos de alguma forma relacionados, por confessa incapacidade de juízo imparcial. Agora, depois de ver o Prós e Contras, já não resisto mais. Afinal, somos todos contra, ninguém defende a praxe ou, melhor, "a praxe não é aquilo", ouvi eu várias vezes. Pois bem, o problema é que a praxe é precisamente e essencialmente aquilo.
Então vamos lá a ver. Proponho que alguma associação académica, os tais repositórios da tradição académica, da liberdade de associação e da liberdade de pensamento, como há pouco ouvi da boca do representante da de Coimbra, faça uma sondagem no final do 12º ano, em meia dúzia de escolas, com uma única pergunta: "como gostavas de ser recebido na Universidade?". Decerto que uns esmagadores 99% responderiam "quero ser praxado, pintado, humilhado, conduzido na rua como se fosse um burro, obrigado a fazer figuras ridículas, cagado, posto de joelhos, submetido aos ditames dos veteranos; numa palavra, integrado na vida académica". Ora, porque é que nunca ninguém o fez? Nunca ninguém se lembrou de perguntar aos caloiros o que eles querem? Porque é contra a lógica da praxe, que é submeter os recém-chegados à autoridade dos que já lá estão, dos que "passaram". Não me lixem. Praxe é isto. O resto é areia para os olhos. Não me venham com histórias de acolhimento, de integração no espírito académico. E, muito menos, de liberdade.
Conheço uns quantos putos que foram praxados porque quiseram. Conheço até um que ficou triste porque entrou tarde e não chegou a tempo. E porquê? Porque lhes é incutida a ideia de que "ser praxado" é condição necessária para se ser "estudante em pleno", quem não o é, falha a "prova". Quem é praxado pode praxar e, suprema honra, pode vestir o "traje". Quem diz traje, diz "farda". Antigamente, a tropa fazia deles uns homens, não era? E agora, que já não há tropa? É este espírito de ascender ao grupo, passar o ritual de iniciação, este sentido de "é um frete, mas tem que ser", que leva tantos a aceitarem passivamente o que lhes é apresentado como um preço necessário a pagar para a sua nova condição; cada um deles, individualmente, pressionado para entrar no curral pelas ovelhas do rebanho. Tudo envolto em ambiente de festa e regado, no final, com as bebedeiras do costume. Conheço putos que apanharam as primeiras no final dos dias de praxe, com a complacência dos pais. Agora são adultos, são universitários, podem permitir-se estes deslizes, afinal, sofreram aquilo, merecem uma recompensa, e ver o filho de capa e batina é um orgulho.
A mim, faz-me especial confusão o seguinte: a praxe académica, a capa e batina, eram sinais de um tempo em que o acesso à Universidade estava reservado a uma pequena minoria de jovens. Aqueles que podiam. Logo, eram sinal de distinção social, de acesso a uma categoria inacessível à esmagadora maioria dos portugueses. Os rituais da praxe tinham uma clara conotação iniciática, num ambiente social e político que pregava a obediência a uma ordem, a um chefe. Uma geração de estudantes rejeitou a praxe. Libertou-se da praxe. Mas hoje, com um acesso universal ao ensino superior, onde tirar um curso superior é - ou devia ser - uma aspiração normal, banal, rotineira, ao alcance de qualquer jovem, no Portugal democrático, de massificação dos direitos e do primado da liberdade individual, de ação e de pensamento? Como se explica o renascimento da praxe? Eu arriscava-me a responder, se não soasse muito snob: provincianismo, simplesmente. O mesmo que permite a resiliência do primado da gravata, do doutor, do emproamento individual, da arrogância social. Pronto, disse, agora chamem-me nomes, vá.