Daesh, ou chamar as bestas pelos nomes
Em 1576, Pero Magalhães de Gândavo dizia, no que é considerada a primeira História do Brasil (História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil), que deveria chamar-se àquela terra Santa Cruz e não Brasil porque se tratava do nome original com que os portugueses a haviam batizado, porque era um nome elevado e grandioso, ao contrário da desprezível designação da madeira vermelha e, finalmente, "para que magoemos ao Demónio". Passaram mais de quatro séculos e já não passa pela cabeça de ninguém usar argumentos ideológico-religiosos deste tipo para justificar uma designação, mas os nomes continuam a ter uma importância fundamental. Numa era de difusão acelerada da informação, a forma como nos referimos a qualquer coisa, uma terra, um país, um estado, um movimento, não pode ser minimizada.
Os membros do grupo armado que desde há meses avança pelo norte do Iraque e da Síria autointitulam-se "mujahidin" ("combatentes" do jihad) e à sua formação "al-Dawla" ("o Estado"), embora reclamem algo de mais amplo, o "califado". A imprensa internacional, como não sabia como lhes chamar, adotou a forma ISIS, ISIL ou apenas IS (de "islamic state") e, em Portugal, "Estado Islâmico". Muito bem. Podemos começar por aqui: em primeiro lugar, aquilo não é um Estado, é um bando armado que controla um território pela força das armas e domina populações pelo terror e por atrocidades cometidas contra quem quer que não se submeta às suas ordens. Segundo, não é Islâmico; age em nome de uma religião, o que é uma coisa bem diferente. E ofensiva, sobretudo para quem a professa. Vejamos: o que diriam os católicos, aqueles que seguem a versão romana da fé em Cristo e rejubilam com o Papa Francisco, se algures no mundo alguma entidade praticasse um semelhante nível de intolerância e de brutalidade e se intitulasse "Estado Católico"? Logo, aquilo merece repulsa universal, mas o seu combate, na primeira linha, pertence aos que são involuntariamente colocados no mesmo barco. Not in my name, proclamaram alguns muçulmanos, infelizmente poucos, há algumas semanas.
Poucos? Não estou certo se foram poucos. Sei, sim, que o seu eco na imprensa internacional foi modesto. Não importa, para já. Importa, sim, é a forma como devemos designar aquilo. Uma das regras elementares da luta contra um inimigo é rejeitar tratá-lo da forma que ele deseja. Pois todos nós estamos há semanas, há meses a favorecer aquilo, ao espalhar e divulgar, de forma global, os termos pelo qual deseja ser tratado e pelo qual ficará certamente na História: Estado Islâmico. Se se autoapelidasse, sei lá, Paraíso Terrestre, presumo (mas não estou seguro) que pensaríamos duas vezes antes de reproduzir tal epíteto.
Então, o que chamar àquilo? Ocorrem-me imediatamente várias hipóteses, que prefiro não reproduzir. Apego-me a uma: Daish ou Daesh. E porquê? Por duas razões: a primeira é que motherfucker é pouco suscetível de figurar nos noticiários internacionais; a segunda é que os seus membros nunca disseram que não queria ser assim tratados. Mas sobre Daesh, sim. Aliás, os franceses já disseram que é assim que vão passar a chamá-lo, ao pseudo-Estado Islâmico. É um acrónimo, é ofensivo, e eles já condenaram a sua utilização. É quanto me basta. (Ler aqui, aqui ou aqui para mais explicações, sff).