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jugular

do corporativismo

Há poucas coisas mais estranhas do que a ideia de que uma ocupação ou uma profissão criam um colectivo de iguais, irmanados pelo métier. Por que carga de água as pessoas que escolheram ou aterraram no mesmo negócio ou indústria, decerto pelos motivos mais diversos e com os empenhos mais variados, hão-de ser vistas e verem-se como próximas ou até idênticas, geminadas, nos seus objectivos e atitudes?

 

A ideia está implícita na palavra geralmente utilizada para denominar os que ganham a vida a fazer o mesmo tipo de trabalho: “pares”. Ou seja, a par -- ao lado de, como iguais – mas também em parelha, como que em sintonia e simbiose, devedores de ajuda mútua, compreensão, solidariedade. Tudo bem, é bonito e é basicamente o que se espera de boas pessoas. Em relação a toda a gente, claro, e não apenas às que fazem o mesmo que nós só porque fazem o mesmo. A coisa começa a ficar esquisita, porém, quando nos damos conta de que existe a expectativa de que os tais “pares” se solidarizem ainda que considerem que quem faz o mesmo não o faz exactamente bem ou da maneira que consideram boa, desejável, ou até suficiente – em suma, nem sequer faz o mesmo.

 

Como se terá chegado a essa noção de que sapateiros, camionistas, professores, juízes, polícias, jornalistas, devem estar um por todos e todos por um, cúmplices no bem e no mal, no certo e no errado, como se fossem família, amigos, companheiros de armas – daquele género que diz “nenhum soldado fica para trás”? Como se terá estabelecido a certeza de que é suposto olhar-se para o outro lado perante as faltas dos pares, calá-las e defendê-los por mais que se considere não terem defesa, e nunca nunca os denunciar sob pena de opróbrio? De que forma enviesada e perversa se estatuiu que alguém deve atraiçoar-se a si próprio e àquilo em que acredita, atraiçoar a própria ideia que tem da profissão que desempenha, em ordem de, supostamente, a defender? Quando é que o errado se tornou certo e o certo se tornou errado?

 

Fazer da ideia de “corporação” e da sua “imagem” algo maior que a soma dos indivíduos que a compõem, criando uma entidade a que se dá o nome de “interesse comum” que sobreleva e comprime os imperativos éticos de cada um deles resulta nessa monstruosidade que faz polícias mentirem acéfala e criminosamente por polícias, médicos recusarem testemunhar contra médicos, juízes perdoarem a juízes as faltas que noutros lhes mereceriam pesada condenação. É a ideia dos “nossos” contra os “eles”, do “ou estás por nós ou contra nós”, do “de que lado estás”. A ideia de que quem fala “contra colegas” renuncia à irmandade e deve ser tratado como traidor e pária. Uma ideia contra a qual todos se manifestam – como ideia, claro, e desde que o mal em causa se remeta para “as outras corporações”, mas que na prática quase toda a gente aplica, execrando quem o não faz.

 

Nessa matéria, ninguém é mais judicioso que os jornalistas, sempre vigilantes e denunciantes dos variegados corporativismos, sempre lestos a investigar as cumplicidades e tráficos das outras profissões e profissionais, sempre disponíveis para considerar todos sob suspeita de encobrimento até cabal prova em contrário – mas tão ou mais avessos a apuramentos de responsabilidades ou a questionar procedimentos no seu seio como aqueles que tanto criticam.

 

Espantoso que os que em palavras e sobretudo em actos pugnam pelo mais arreigado e irracional corporativismo não se dêem conta de que ao fazê-lo arruínam aquilo que alegadamente pretendem preservar – a imagem da profissão.

 

Disse estranho e espantoso? Queria dizer deplorável.  

 

 

(publicado na coluna sermões impossíveis da notícias magazine, já não me lembro quando) 

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