A superioridade moral de Massamá
De acordo com a biografia oficial do Primeiro-Ministro, de Sofia Aureliano, Pedro Passos Coelho revelou desde muito cedo uma grande curiosidade intelectual. Se Miguel Relvas diz que pautou a sua vida «pela procura do conhecimento permanente», Pedro mostrou logo na infância «uma avidez, quase aditiva, pela busca do conhecimento». Ainda não tinha completado a 4ª classe e já o nosso primeiro-ministro «escrevia melhor que muitos doutores». Deve ser daqui que vem a ideia de que o país tem licenciados a mais. O amigo Relvas foi mesmo um dos pioneiros dessa causa nacional, tendo-lhe sido atribuído pelo ministro Crato o título de ex-licenciado.
Na juventude, não foi um rapaz especialmente namoradeiro, mas o nome da primeira namorada fica na memória: Maria Luís. «Foi um namoro bonito mas curto, que terminou quando chegou o verão.» Anos mais tarde, em 2013, um tipo malvado chamado Dr. Paulo Portas também quis que o relacionamento de Pedro com uma outra Maria Luís terminasse quando chegou o verão. Como diria Marx, a história repetia-se. Só que, apesar da breve passagem pela UEC, Pedro não quer nada com Marx. Prefere uma versão caseira do princípio thatcheriano do «no such thing as society»: «somos aquilo que escolhemos ser». Escolheu ignorar a carta de demissão «irrevogável» de Paulo Portas, e a verdade é que dois anos depois ainda cá anda.
«O Movimento das Forças Armadas nascido da revolução dos cravos» (não foi ao contrário, Sofia?) apanhou o jovem Pedro com a família em Angola. O pai, António, «ouvia relatos de grande euforia em Portugal, mas não via eco dela em Angola». Sofia acha que «o pós-25 de abril demorou a chegar a Luanda». Deve ter sido por causa da diferença horária. De resto, o jovem Pedro recuperou o tempo perdido e cinco anos depois, já estava na JSD, a impressionar com os seus «famosos discursos de improviso», que agora fazem as delícias da oposição. Pedro Pinto recorda que no discurso de estreia, ele foi «o único que verdadeiramente defendeu aquilo em que acreditava com base na informação que tinha, ainda que as premissas estivessem todas erradas». Ainda hoje é frequente isto acontecer.
Também vale muito a pena perceber como se divertia Passos e o grupo da jota. Segundo Sofia Aureliano, «Nos anos 80, a ausência de televisão e de novas tecnologias fazia com que o ato de pertencer a um grupo com os mesmos interesses fosse a forma mais natural de conviver em sociedade». Estranhos tempos, esses em que não havia «novas tecnologias» e em que pertencer a um grupo era a forma mais natural de conviver… Seja lá como for, o convívio passava por um bar de Luís Represas, «frequentado por artistas, profissionais que [como nota Sofia] já nessa altura seguiam maioritariamente uma orientação mais à esquerda». Foi justamente aí que Passos conheceu a sua primeira mulher: essa artista de esquerda chamada Fá, uma das famosas Doce. Mas talvez por causa da «ausência de televisão e novas tecnologias», Pedro não associou logo a cara ao nome. Fá despertou-lhe a atenção por um motivo muito especial: «tinha um rosto muito parecido com uma senhora que ele conhecia, a mulher do senhor Faria, com quem Fá partilha traços de um rosto tipicamente judeu».
O pai nunca lhe quis dar dinheiro «para ele andar metido na política» (safa, safa). Foi nos cursos de formação da JSD que ganhou o seu primeiro sustento. Esse bichinho da formação voltaria anos mais tarde, durante a travessia do deserto, através dos famosos cursos para técnicos de aeródromos da Tecnoforma. Nessa empresa, Passos teve como missão gerir toda a formação à distância. A coisa deve ter sido gerida demasiado à distância, porque o resultado de que o atual PM mais se orgulha é «ter estado muito próximo de criar uma escola de ensino superior em Cabo Verde». Ângelo Correia, conhecido caçador de talentos, deu valor a isto e foi buscar Pedro para junto de si na Fomentinvest, onde esteve até 2010. Desta magnífica experiência no setor privado ficou-lhe «o valor do risco (…) que falta na maior parte dos que dependem dos favores e dos benefícios do Estado». A Tecnoforma e a Fomentinvest devem ter sido as únicas empresas de formação profissional e de serviços ligados ao ambiente que nunca beneficiaram de dinheiros públicos.
Em 2010 Passos vê-se forçado a depender «dos favores e dos benefícios do Estado»: torna-se líder do PSD. Nessa qualidade, «viabilizou a governação socialista enquanto achou que essa seria a melhor alternativa para o país» e, já agora, enquanto os prazos constitucionais impediram o Presidente de dissolver a Assembleia. Preferiu chegar a primeiro-ministro no tempo certo, quando «ganhava força a alternativa social-democrata de virar a austeridade para o Estado e não para as pessoas». Estranhamente, apesar desta excelente plataforma social-democrata e apesar de Passos estar a «pôr o país no mapa do investimento e na senda do crescimento», os portugueses continuam a achá-lo uma pessoa má como as cobras. Mas para grandes males, grandes remédios: reúnem-se uns depoimentos de gente desinteressada, como Marco António Costa ou Secundino Cardoso do restaurante O Comilão; revela-se o historial de doenças da família inteira; e finalmente mostra-se a intimidade do apartamento de Massamá.
Sofia Aureliano esteve lá e conta-nos como é «o estado de espírito». À entrada, foi recebida por Peluche e Olívia, «as cadelas da família que completam, com o seu entusiasmo sonoro, o quadro mais genuíno da arte de bem receber». Lá dentro percebeu que as gravatas não combinam com o ambiente, embora isso não se deva felizmente a «qualquer recalcamento ideológico mal resolvido ou a qualquer simbolismo adjacente». De resto, em casa, Passos até estende a roupa e põe a loiça na máquina, «para sentir um registo de normalidade». Pedro é um de nós, que também só lavamos a loiça e estendemos a roupa para sentir «um registo de normalidade».
Ultrapassada que está a tese da superioridade moral dos comunistas, este livro propõe-nos assim a tese da superioridade moral de Massamá. É certo que Passos confessa «não gostar de dar a ideia de poder estar a manipular o sentimento das pessoas em favor de um determinado objetivo». Mas infelizmente, como lembra em epígrafe a própria Sofia Aureliano, «em política o que parece é» (frase que a autora atribui a Sá Carneiro).