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jugular

maria elisa, lina: in memoriam

a minha apresentação do livro do João Bonifácio, sobre o chamado caso Palito (o homicídio, a 17 de abril de 2014, de duas mulheres, tia e mãe da ex mulher do homicida, a tiro de caçadeira. o autor das mortes também feriu a ex mulher, maria angelina, e a filha dos dois, sónia, que se colocou à frente da arma para salvar a mãe).

 

Maria Lina Silva, Elisa de Jesus. Lina e Elisa.

Ninguém conhece estes nomes. Ninguém sabe dar-lhes um rosto, sequer idade. Sabemos só isto: que eram mulheres, e velhas. E que foram assassinadas – na categoria de ex sogra e irmã da ex sogra, respectivamente mãe e tia da ex mulher do assassino.

Desse conhecemos a cara, até o corpo – franzino, baixo, um caganita de homem, como lhe chamam, ou coisa parecida, a dada altura neste livro.

Sabemos o nome e a alcunha, e fomos sabendo coisas díspares, reveladas num dia, desmentidas no outro em manchetes sucessivas que o João Bonifácio relembra, com humor e perplexidade.

A perplexidade do jornalista ante os jornais, e isso que os jornais são hoje e talvez tenham sempre sido (gostamos de pensar que houve uma idade do ouro, mas terá havido?): primeiro matou porque tinha cancro, depois afinal não tinha, etc. Porque tudo andou à volta dele, o Palito – quem é, o que fez, por que fez.

Quando comecei a ler este livro esperava encontrar nele outra história – a destas mulheres que foram mortas. Não porque foram mortas, se é que há mesmo um porquê, e se ele é traduzível, se sequer interessa, esse porquê individual.

Quem eram.

Mas o João, que partiu para esta história por pura vontade de a contar, sem sequer um jornal por trás, inteiramente a suas expensas, financeiras e todas as outras, porque percebeu que havia muito mais nisto que as manchetes imediatistas, voyeurísticas, aflitas, urgentes, de quem tem de dar notícias todos os dias sem notícia nenhuma para dar e apanha a primeira frase que alguém diz para compor um artigo porque tem de sair um artigo e pronto – é assim que as coisas são, garanto – não conseguiu saber.

Porque é difícil pôr as pessoas a falar, porque é ainda mais difícil pôr as mulheres, e numa situação destas, a falar, e a falar com um homem.

Tenho pena.

A única, última, derradeira coisa que se podia fazer por elas, Lina e Elisa, era conhecê-las, marcar-lhes o nome e a história na nossa história, provar que não se pode matar duas pessoas assim, com a caçadeira encostada ao peito, e apagá-las da vida e da memória como se nunca tivessem sido.

Mas, como se costuma dizer, pronto.
Pronto: o livro não é pois a história, ou também a história, destas mulheres. É outra coisa também importante.
A história de um repórter à procura de uma história, a tentar perceber, com tudo o que isso implica e que raras vezes se percebe nas histórias contadas nos jornais: o processo.

O processo de tentar, o processo de ir tentando, de encontrar um fio no meio do que se vê e ouve e sente, e ir puxando por ele até chegar a uma espécie de enredo, uma espécie de mapa, de caminho, até poder dizer: estou pronto para contar isto, mesmo se sei que não sei, mesmo se agora sei mais o que não sei do que não sabia no princípio.

Jornalismo. Jornalismo é assim, não o encontrar a verdade mas saber que a verdade não se encontra, só se procura, e ser capaz de mostrar isso e fazer disso uma história.

Precisamente: “Do princípio ao fim, Trevões é esta relutância em dizer a verdade”, escreve o João.

Trevões é o lugar da matança*, o lugar onde, conta o livro, um homem terá assistido sentado num banco aos homicídios e sorrido; o lugar onde ajudaram o homicida a manter-se escondido e alimentado, acalentado, no quente, o lugar de onde, provavelmente, vieram as pessoas que o aplaudiram como herói à porta do tribunal.

As pessoas que dizem, e de quem um GNR diz, que tendo ajudado o homicida não cometeram crimes porque este ainda não fora condenado e portanto à luz da lei não era um homicida.

Se calhar não interessa muito se é crime ou não do ponto de vista legal, mas não é verdade que não o seja – existe o crime de obstrução à justiça.

Mas o João procura um crime maior: o da violência persistente, aceite, calada, habitual, a que chama doméstica, a que se costuma chamar doméstica, e que o GNR com quem João se encontra no meio da estrada em encontros supostamente clandestinos -- mas à vista de toda a gente, talvez seja essa a ideia, aliás -- lhe define tão bem:

“Isso das mulheres... sabe como é. Terra pequena, não há nada para fazer, chega-se a casa todos os dias e elas estão ali... E não ficam mais bonitas com o tempo. Bebe-se uma pinga e quando se dá por ela já só se fala à chapada. É assim.”

Isto das mulheres.

Isto dos homens.

O que é isto, que, aspas, é assim?

Esta é a pergunta essencial a fazer, a pergunta essencial deste livro.

Um dos capítulos tem aliás este título: os homens aqui são do século xviii.

Como se o problema fossem os homens dali, como se o problema fosse de um tempo outro.

Lamento: não é.

O problema, aliás, não é isso a que se dá o nome de violência doméstica, não só porque isso a que se chama violência doméstica e que geralmente se usa para caracterizar homicídios é a ponta do iceberg, mas porque a violência doméstica abarca toda a violência no contexto relacional dito familiar ou amoroso (passe o paradoxo).

E o problema é mesmo a violência sobre as mulheres, que como o GNR resume é mesmo só por causa das mulheres – por serem mulheres, por estarem ali.

E esta violência não é de Trevões – é de todo o lado, é a violência que, e volto ao início, permite que perante o caso Palito ninguém tenha querido saber quem são, quem foram, a Elisa e a Lina.

A violência que no caso que mais me revolve as entranhas, o da Manuela Costa, 35 anos, em 2009 assassinada também com uma caçadeira – outra vez a caçadeira -- à porta da GNR (outra vez a GNR) de Montemor-o-Velho, dentro de uma ambulância e com a filha de cinco ou seis anos nos braços, a violência que, digo, permitiu que os guardas nem revistassem o ex marido depois de a ter executado, ou o algemassem, quanto mais outra coisa qualquer como mandá-lo ao chão apontando-lhe uma arma, e o levassem para dentro do posto assim à vontadinha, de modo que ele matou um deles lá dentro com outra arma que trazia consigo.

Pensem nisto: um homem executa uma mulher dentro de uma ambulância à porta de um posto de polícia, depois de ela lá ter ido pedir ajuda -- para já, como é que isto pôde suceder? – e ainda vai para dentro do posto a seguir sem sequer ser revistado, algemado.

“Isso das mulheres”, como diz o GNR do João.

Isso das mulheres.

Durante muito tempo pensei que não, que era um erro, uma derrota, uma condenação antecipada, assumir, admitir que esta vitimização existe e é global, que somos todas, à partida, se não à chegada (espero que não à chegada) vítimas de uma coisa maior, global, quase inelutável.

Isso que desde bebés nos remete para um lugar específico, o de ouvir e calar, o de andar e calar, o de comer e calar, nunca responder, nunca levantar os olhos, enfrentar, lutar.

O lugar da vergonha mas também do medo de que fala, no fim do livro, finalmente fala, Maria Angelina, a ex mulher de Palito --

não, tudo sempre assim, à volta de Palito, não,

dizer antes: a filha de Maria Elisa, a sobrinha de Lina.

Ela, a Maria Angelina, a filha de Maria Elisa, a sobrinha de Lina, fala da vergonha e de medo.

De denunciar, de admitir. A vergonha disto – de saber que se é vítima, sem se ter escolhido, sem ter tido escolha.

Falaram-me disso, há umas semanas, e segurem-se nas cadeiras porque vou fazer aquilo que vos vai parecer uma curva apertada a grande velocidade mas é só a mesma, mesmíssima, estrada, miúdas do liceu Camões numa conversa sobre o dia internacional da mulher.

Dizia uma, a Inês, 16 anos: “Desenvolvi uma maneira de andar no metro que não tem nada a ver comigo, tipo rapaz (e faz assim). Porque a minha atitude física determina a dos outros. Já me senti muito mal em transportes públicos e muito assustada e com medo, e desenvolvi esta forma de me mexer e de falar. Porque fisicamente enjoa-me e enoja-me honestamente o tipo de situações a que estamos submetidas. Porque sinto-me muito fraca, e odeio sentir-me fraca.”

Lisboa, não Trevões.

Isso a que se dá o simpático, desculpabilizador, acariciador nome de piropo. Não, decerto, chumbo de caçadeira.

Agora estão a pensar: ela passou-se.

Que tem agora isso, a forma como os homens tratam as mulheres desde crianças na rua, como deixamos os homens tratar as mulheres desde crianças na rua, como fracas, como vítimas, como coisas disponíveis, “sempre ali”, disponíveis para a violência, para tudo, como ensinamos as mulheres a sentirem-se desde crianças sempre como uma espécie de crianças, como ensinamos as mulheres desde crianças a verem os homens, que tem isso agora a ver com mortes, com o desprezo pelas mulheres que o GNR do João tão bem resume?

Tem tudo. Tudo a ver.

Estamos ali, estamos aqui, estamos sempre aqui, e quando se dá por isso, quando damos por isso, e damos por isso até deixarmos de dar, até ser normal, levamos chapadas.

É um processo, a violência sobre as mulheres, como o jornalismo: temos de aprender a vê-la, ser capazes de perceber de onde vêm as mortes, de onde vem o desprezo que mata e a vergonha, a impotência, a noção de fragilidade e vitimização que se deixa matar.

Temos de aprender – nós, mulheres, eu, mulher – que não é por recusarmos ser vítimas que os outros deixam de nos ver como vítimas e nos tratar como vítimas. Que nomear e apontar essa vitimização não é ser fraca: é a forma de a combater, a forma de ser forte.

Que não é fraqueza reconhecer que temos de nos haver, de lutar contra uma coisa maior que nós, uma espécie de destino decretado – que não é vergonha admitir que esse decreto está lá, está aqui, que nos condiciona e que só admitindo que nos condiciona pode deixar de nos condicionar. A nós mulheres, a nós homens.

Porque ninguém, absolutamente ninguém, está livre disto, e nunca estaremos se não percebermos que a luta contra a violência começa a montante, muito a montante, connosco, em nós.

Que o primeiro passo é o de, como os alcoólicos, como os junkies, sermos capazes de nos levantar e dizer:

eu faço parte desta violência.

E só eu, eu, posso fazer alguma coisa contra ela, só eu – eu -- posso quebrar este ciclo.

 

*nota: trevões não é o lugar onde ocorreram os homicídios, é a terra de palito; os homicídios ocorreram em valongo dos azeites, muito perto.

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