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jugular

Não esquecer: o (mau) uso do diagnóstico psiquiátrico ao serviço da política mandou muita gente para a Sibéria e para os campos de concentração nazis.

Começo com duas notas prévias.


Sou psiquiatra e, enquanto tal, não sigo indivíduos com perturbação de pedofilia - como nunca integrei, nem integrarei, qualquer projecto terapêutico que verse o apoio a agressores no âmbito do crime de violência doméstica. A razão é simples de explicar, tenho uma contra-transferência muito negativa, uma absoluta falta de empatia  e sou, portanto, uma má psiquiatra nestas situações. Tenho obrigação de conhecer a sua clínica, de as diagnosticar e de enviar os sujeitos para quem saiba mais e melhor que eu.

Ser abusador sexual de crianças não é uma doença, é um crime. Os tratamentos em psiquiatria, como em qualquer especialidade médica, dirigem-se a entidades nosológicas perfeitamente definidas. O que tem indicação de tratamento é a perturbação de pedofilia, não o crime de abuso sexual de menores. Ora como facilmente se verifica pela consulta dos processos instituídos a maioria dos abusadores de menores não são pedófilos - basta relembrar que a grande proximidade familiar é regra e que muitas vezes são adultos que têm uma relação estável com outro adulto.

Dito isto quero lembrar que o uso do valor da reincidência - a rondar os 80% no dizer da própria, posteriormente desmentida por vários estudiosos da matéria e por dados da própria Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais - do crime de abuso sexual de menores para justificar a "lista" é da total responsabilidade da ministra da Justiça. Foi, aliás, o único argumento usado.

Não há, portanto, nenhuma "guerrinha" nem a situação se resume a um "embirrar com a ministra" como o Público escreve numa notícia de ontem, atribuindo a citação a Anabela Neves, médica do Instituto de Medicina Legal de Lisboa. Mas enfim, ainda estamos no domínio da opinião, só que, a fazer fé na notícia,  a clínica afirma também que nos "pedófilos exclusivos (...) os impulsos para voltar a abusar são "muito intensos"", reconhecendo depois... "nunca ter visto estatísticas".

Este tipo de declarações, de carácter técnico, são particularmente graves vindas de uma clínica e doutoranda em neuropsicologia, que já tinha dito ao Público em dezembro de 2014 "Dentro dos predadores, temos os pedófilos. O pedófilo é aquele que, por definição, tem actividades sexuais com crianças pré-púberes – ou seja, sem caracteres sexuais secundários, não têm sequer pêlos púbicos, e, no caso dos rapazes, que ainda não têm alterações da voz.".

Vejamos os critérios de diagnóstico de perturbação de pedofilia de acordo com a mais recente versão do sistema classificativo das doenças psiquiátricas da Associação Americana de Psiquiatria, o DSM 5 (a versão portuguesa foi editada pela Climepsi em 2014, é confirmar nas páginas 834 e 835):

 

A. Fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos, recorrentes e intensos, envolvendo actividade sexual com uma criança ou crianças pré-púberes (geralmente com 13 anos ou menos), por um período de pelo menos seis meses

B. O indivíduo actuou de acordo com esses impulsos sexuais, ou os impulsos sexuais ou as fantasias provocam intenso mal-estar ou dificuldades interpessoais.

C. O indivíduo tem pelo menos 16 anos e é pelo menos 5 anos mais velho do que a criança ou crianças do critério A.

 

Especificar se:

Tipo exclusivo (atraído apenas por crianças)

Tipo não exclusivo

Especificar se:

Sexualmente atraído pelo sexo masculino

sexualmente atraído pelo sexo feminino

Sexualmente atraído por ambos os sexos

Especificar se:

Limitado ao incesto

 

Faço notar que o DSM 5 não define "predador", não é um conceito clínico, e que a definição de perturbação de pedofilia dada pela clínica está errada. Mas há mais. Repetindo-me, de acordo com o Público Anabela Neves terá referido "nunca ter visto estatísticas" sobre os valores da reincidência do crime de abuso sexual nos "pedófilos exclusivos". Pois não viu, pela simples razão de que, clinicamente, não existe o diagnóstico independente de  "pedófilo exclusivo". Como se pode comprovar, na definição de perturbação de pedofilia acima referida não existem "três tipos de pedófilos" como é dito na notícia - e no comunicado de ontem do ministério da Justiça em resposta à notícia do Expresso -, o que existem são seis especificadores para uma mesma perturbação que se chama perturbação de pedofilia.  Os especificadores não individualizam tipos clínicos separados. Nos sistemas classificativos das doenças, de todas as doenças, existem variações dentro de uma mesma categoria diagnóstica, com importância em termos de decisão terapêutica - um cancro do pulmão, por exemplo, tem vários especificadores: o tipo celular, o tamanho, a existência ou não de metastização e o local, próximo ou distante, da metástase.  Passa-se o mesmo nas classificações da doenças psiquiátricas. 

Extrapolar os aspectos puramente clínicos para discutir aspectos políticos e legislativos é errado, grave e muito,  muito perigoso. Nunca é demais relembrar que o uso indevido do diagnóstico psiquiátrico em prol da política mandou muita gente para a Sibéria e para os campos de concentração nazis.

O que importa salvaguardar são as vítimas e, desse modo, defender tudo aquilo que aumente a eficácia da prevenção do crime e da sua reincidência, seja alta ou baixa. Não é isso que prova a experiência da "lei de Megan". Defendo a necessidade de campanhas de informação e de prevenção junto das crianças.  A obrigação do Estado, da justiça e de todos nós é obviamente proteger as crianças, já a eficácia da listagem tipo "procura-se vivo ou morto" para essa protecção levanta-me muitas reservas e temo que funcione como um "descansa consciências, já fizemos a exposição em arena pública agora amanhem-se senhores pais, senhores educadores, senhores adultos". A este propósito sugiro a leitura do trabalho da Fernanda, publicado anteontem no DN, nomeadamente a entrevista a Richard Tewksbury - aqui e aqui.

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