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"Não transformem os direitos humanos em língua de pau" - José Pedro Monteiro

Este texto do André Freire e da Liliana Reis tem várias coisas que me incomodam. Mas fico-me por esta parte. 
A forma como o problema dos direitos humanos é tratado de forma a-histórica e a-política contamina o resto do debate.

 

Sem título

 


Há várias coisas que são problemáticas, desde logo a ideia de que os direitos humanos decorrem das duas revoluções liberais "naturalmente". Há demasiada gente que já mostrou como essa teleologia é falaciosa: basta atentar na forma como os direitos inaugurados por essas duas revoluções foram aplicados de forma restritiva por mais de um século. Mais, como no seu imediato decurso (das revoluções) houve a necessidade de clarificar e delimitar a quem os direitos políticos e civis se aplicavam. Os direitos humanos como os conhecemos, isto é, verdadeiramente universais e passíveis de serem invocados apesar do Estado, são filhos do século XX e da sua história particular (havendo vários debates sobre o momento da sua fundação dentro desse século). São filhos das duas guerras mundiais (ainda que essa maternidade decorra de forma diferenciada), do descontentamento generalizado com o direito de protecção de minorias do entre-guerras, de vários movimentos de protesto de base racial ou de género, pela universalização normativa do estado-nação como resultado dos processos de descolonização. Basta atentar na frequência do uso comum, e mesmo académico e político, da expressão por comparação com tempos mais recuados. Direitos naturais, direitos de cidadania, direitos do homem são conceitos diferentes e usados em contextos substancialmente diferentes. Veja-se o que têm escrito Samuel Moyn e uma série de outros autores no blog da revista Humanity. Mais poderia dizer-se sobre uma essência ocidental dos direitos humanos. Não só é difícil pensar a sua história sem a constante participação de actores de outras geografias (tanto enquanto objectos como sujeitos deste debate) como a afirmação, podendo servir para nos encher de orgulho, é a estocada final na desejada universalidade de uma linguagem dos direitos humanos. 

 

O segundo problema, que decorre deste, e que também não é pacífico, é esta distinção entre direitos individuais e colectivos. A necessidade permanente de criar antinomias sem atentar nas suas origens históricas. As dicotomias entre individual e colectivo, entre direito positivo e negativo, a aparente incompatibilidade e jogo de soma nula entre igualdade e liberdade não são naturais, são também elas construídas sobre um terreno histórico e político específico. Neste caso em particular, alimentadas (não criadas) intensamente pelo maniqueísmo da guerra-fria.  Mas basta olhar para a declaração para perceber que esta distinção entre liberalismo e marxismo colectivista é absurda. A própria carta mistura direitos colectivos e individuais: por exemplo, a carta diz que "a vontade do povo é o fundamento das autoridades públicas". Será isto um direito individual? Ou o direito a segurança social? E que dizer do convénio de 1966 sobre direitos económicos, sociais e culturais que ainda hoje vigora, não obstante a derrocada da União Soviética? O direito à auto-determinação é um direito humano ou não? Nenhuma destas respostas é pacífica, nem no presente nem no passado. Basta ver a quantidade de historiadores que ainda hoje debate se a época dos direitos humanos começou em 1948 ou nos anos 70, com fortes argumentos de ambos os lados.

 

O problema aqui é que esta passagem é uma investida retórica que pretende rasurar a natureza conflitual de um programa dos direitos humanos. Por ser um programa "mínimo" a que muitos aspiramos, e daí a sua força, como qualquer lista de direitos, é sujeito a opções, debates e liças que não podem ser subjugados a uma “razão” universal (aliás, como sempre sucedeu desde 1948). É vítima de processos de integração ou exclusão de sujeitos ou prioridades. Os autores podem achar que o direito da mulher não ser subjugado é mais relevante que o direito à liberdade religiosa (e, acrescentaria, ao direito de uma pessoa se vestir como quiser). Mas é disso que se trata, da sua opinião dentro de um espaço conflitual onde quem acha o contrário não está a negar o valor dos direitos humanos. E eles próprios acabam por o admitir. Bastante mais problemático, parece-me, é como alguém que pretende defender direitos "individuais" pode achar que a vontade expressa de alguém pode ser derrogada por uma interpretação (De quem? Por quem? Com que limites?) das grandes forças sociais que determinam o seu comportamento. Se fosse mauzinho, diria que isso, sim, é bastante soviético.

 

 José Pedro Monteiro (escriba convidado)

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