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"Notícias, declarações e deliberações de inversão de marcha" por André Nóbrega*

Tem havido uma sequência de notícias e declarações em relação aos centros de saúde e à prática da Medicina Geral e Familiar, seja no sentido de apontar problemas, seja no sentido de esboçar propostas de mudança, que tornam relevante fazer um ponto de situação. A análise torna-se especialmente importante depois da deliberação da Entidade Reguladora da Saúde - no contexto do Processo de Inquérito n.º ERS 89/13 - de forma a compreender e interpretar as recomendações que faz no documento tornado público.

 

Os médicos de família trabalham hoje, graças à reforma dos cuidados de saúde primários, num esquema muito diferente daquele que os leigos reconhecem aos clínicos gerais das caixas de previdência. As Unidades de Saúde Familiar (USF), um dos modelos em que se trabalha nos agrupamentos de centros de saúde, têm como propósito uma vigilância de saúde baseada em listas de utentes inscritos e em actividade programada. Quer isto dizer que a ideia subjacente às USF é que os médicos e enfermeiros possam ajustar o seu horário de trabalho ao que entendem do estudo da sua lista de utentes. Quer igualmente dizer que se pretende que médico e utente colaborem no sentido de evitar atendimentos não programados, sabendo que a actividade do centro de saúde será tanto melhor organizada quanto menos depender de atendimentos esporádicos, beneficiando o utente não só dessa organização e planeamento, como também de uma consulta com mais tempo. Este modelo de funcionamento responde às necessidades de uma medicina que se quer mais preventiva e menos curativa, um modelo que é incontestavelmente melhor, tanto do ponto de vista da saúde do utente como do dos gastos em saúde.

Como entender então as recomendações da ERS? Em resposta a um problema de que fala como se não tivesse antecedentes, a existência de filas de utentes à espera que o centro de saúde abra desde a madrugada, a ERS exige que os centros de saúde adoptem os procedimentos que garantam um atendimento de todas as situações não programadas que apareçam, registando todos os pedidos de consulta, organizando triagens clínicas e eliminando limites de vagas. Admito que, à partida e para um leigo, isto pareça uma solução para a questão. Os utentes ao saberem que seriam atendidos a qualquer hora não sentiriam necessidade de chegarem ao centro de saúde de madrugada e as urgências hospitalares teriam menos visitas dada a disponibilidade a montante. A questão é que esta solução está totalmente desajustada, não só da prática actual da MGF, como também do próprio problema que pretende resolver. Por um lado, não podemos ignorar que o problema das filas de utentes de madrugada à porta é antigo. Mesmo quando todos os centros de saúde trabalhavam mais em função de atendimentos no próprio dia do que de consulta programada, já era habitual haver fila à porta à abertura. Isto deve-se a vários factores que parecem ter sido ignorados: nem todos os utentes vêm para consulta; muitos preferem estar no centro de saúde a esta hora por uma questão de horário de trabalho; os utentes podem querer lá estar à hora de abertura porque querem ser os primeiros a ser atendidos, para não perder tempo, ou porque querem assegurar um contacto com o seu médico de família e ainda não se habituaram a marcar consulta ou usar o contacto telefónico (e outros haverá). Ora nenhum destes motivos seria eliminado com o aumento da oferta de atendimento no próprio dia. Por outro lado, aumentar a consulta aberta desmesuradamente obriga a diminuir os horários de consulta programada, o que levaria ao aumento do tempo de espera para a consulta que se deveria privilegiar, por sua vez aumentando o recurso a consultas esporádicas. Corre-se assim o risco de aumentar a quantidade de gente que quer ir certificar-se que é atendido logo de manhã. A longo prazo, há consequências ainda mais graves. O regresso ao modelo que privilegia o atendimento imediato implica consultas rápidas, o que diminui a capacidade do médico de criar uma boa relação com o utente e investigar correctamente as suas queixas, o que por sua vez levará a um maior gasto a nível de prescrição de meios complementares de diagnóstico e terapêutica, bem como de medicamentos.

 

Há aqui um outro pormenor a focar: nem todas as unidades têm o mesmo número de profissionais. Já para não falar das do interior, onde a falta de pessoal impede uma prática de acordo com o que descrevi, basta analisar o caso das USF que podem ter entre quatro a nove médicos. É assim fácil de perceber que, ainda que haja muitos mais utentes, enquanto numa unidade com muitos médicos e enfermeiros é mais fácil tentar ter sempre um profissional disponível para qualquer pedido de consulta, numa unidade com quatro ou cinco médicos e enfermeiros um horário de consulta desocupado para estar disponível para tudo teria um impacto enorme na actividade programada de cada médico.

 

A ERS parece mostrar alguma boa vontade quando se compromete a apoiar o Ministério da Saúde a informar os utentes dos seus direitos e deveres, bem como da necessidade de adequarem os seus comportamentos às distintas situações de saúde. Isto parece até demonstrar que a ERS reconhece que o problema está, ou pelo menos está também, no facto de os utentes utilizarem mal os serviços de saúde. É infeliz que não se compreenda que isto é um processo lento e progressivo, que se está a verificar, e que não faz qualquer sentido, só para compor uns números, dar sinal de vida, ou fingir que se poupa dinheiro em idas à urgência hospitalar, estragar o que de muito bom tem sido feito a nível dos cuidados de saúde primários em Portugal. Apesar de tudo, esta recomendação poderia entender-se, se fosse um estímulo para corrigir situações muito específicas em que os horários dos centros de saúde não estejam de todo adequados à população que servem.

 

No entanto, e voltando ao meu ponto inicial, esta declaração não vem sozinha. Lembro, por isso, três pontos que considero relevantes para o caso.

 

Primeiro, recordo que, na senda da poupança orçamental, se encerraram ou diminuíram os Serviços de Atendimento de Situações Urgentes (SASU). Ora, se se pretende que os médicos de família privilegiem a actividade programada, se se encerram os SASU onde faziam atendimento em horas extra e se se dificulta o alargamento de horário porque não se quer fazê-lo à custa de horas extra nem pagar compensações aos profissionais, então em que ficamos?

 

Segundo, lembro a recente notícia de que o Ministério da Saúde queria tornar algumas consultas de Medicina do Trabalho em responsabilidade do médico de família. Ora, não bastasse o tamanho da lista, as dificuldades informáticas intermináveis e agora até a vontade de obrigar os médicos a fazer mais consulta no próprio dia, ainda se pretende impor mais uma tarefa aos mesmos. O pior desta pretensa medida é o facto de termos médicos especializados em medicina do trabalho, cuja formação está a ser totalmente desrespeitada.

Em terceiro, deixo uma recordação em tom de aviso: este governo tem sido perito em propor medidas para depois recuar e aprovar outras no meio da confusão. Enquanto combatermos estas, não nos podemos esquecer que os médicos estão neste momento em plena quebra de negociação com o Ministério da Saúde, com greve marcada pela FNAM para Julho e com a Ordem a mostrar uma posição intransigente na defesa não só dos médicos como da qualidade do SNS.

 

Num momento em que os médicos de família estão a ser atacados em várias frentes (algo que se pode dizer de demasiadas profissões em Portugal hoje em dia), com a obrigação de seguir listas de 1900 utentes que são cada vez mais utilizadores do SNS dada a crise económica, com todo o trabalho administrativo e organizativo que o modelo de USF impõe, com os problemas informáticos e com a intenção de os obrigar a colmatar falhas que o governo criou ou não soube ou quis resolver, como as consultas urgentes e a medicina do trabalho, é importante que não só os médicos como os portugueses tenham consciência do que se passa e o combatam tanto quanto possível. Não podemos ser “tigres de papel” nem tão pouco obedecer a “leis da rolha”.

 

Médico Interno de Medicina Geral e Familiar

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