o Ano Novo Chinês e o resto
Começa hoje o Ano Novo Chinês (Ano do Cavalo). Para nós, é apenas uma curiosidade mais ou menos etnográfica, exótica ou astrológica, dança do leão, estalinhos, filme do Michael Cimino, ano disto ou daquilo, eu sou Cavalo, tu és Dragão, não és? Um sinal de quão estranho, turisticamente interessante, maravilhosamente misterioso é o "Oriente". Mas passa-nos ao lado depressa, discreto como discretas são as comunidades de origem chinesa. A imprensa nem se lhes refere. Os chineses não pretendem referendar direitos, não andam em praxes académicas e nada, aparentemente - ou até o Correio da Manhã colocar em ação as suas equipas de investigadores de excelência -, os liga a José Sócrates, à mãe de José Sócrates ou ao Freeport. Deles só se fala quando vem a crise do comércio tradicional à baila, quando um cinema de Lisboa - um entre tantos que cairam, fecharam, encerraram, who gives a damn - corre o risco de dar lugar a uma "loja do chinês" (aí emerge logo a egrégia alma lusa de "defesa do nosso património"), ou quando um restaurante encerra após vistoria da ASAE. É tudo. Mas ontem a RTP-2 passou uma peça interessante sobre os chineses em Portugal. A sua capacidade de trabalho, de adaptação, a sua coesão, a sua discrição, a sua tenacidade. E passou. Para o ano haverá mais.
Em Portugal há uma pequena comunidade. Os chineses nunca foram um problema. Mas até nisto Portugal é um cantinho preguiçoso e acomodado na sua tocazinha europeia. Na verdade, os "chineses fora da China" (Chinese Overseas, que em português toma a engraçada designação de "Chineses Ultramarinos") é um problema. Grande, enorme. Hoje, há um século, dois séculos, três séculos, and counting. No Sueste Asiático (sobretudo aqui), nos EUA, na Austrália, na América Latina ou... na China. Um problema? Sim. Um problema social, histórico, cultural, político, um desafio gigantesco, colocado a diversos níveis - da identidade, da integração, da língua, dos direitos sociais, do poder económico, da aculturação, da mobilidade, das estruturas familiares, das minorias - e em contextos e países distintos - entre democracias, estados "musculados", ditaduras - com experiências diversificadas de contacto com o "fenómeno chinês", entre países com comunidades pequenas e recentes até estados em que a secular presença chinesa (em diversas camadas ou "vagas de imigração") coloca em risco a identidade nacional: Malásia, Indonésia, Filipinas são apenas alguns exemplos. Na China, o problema é também complexo e muito interessante: a relação entre "quem sai" e "quem fica", "quem regressa" e "quem nunca saiu" (que, presumo, se coloca em todas as sociedades com "diásporas", Portugal incluído) é muito complexo. A civilização chinesa é profundamente sinocêntrica. Tradicionalmente, quem sai abandona o sagrado solo dos seus antepassados e o centro da civilização, quem regressa é olhado com suspeita (pode vir contaminado de barbárie, pois claro). Em vários momentos da História, o poder político chinês proibiu a emigração. Quem saía não podia regressar. Nos tempos de Mao, os "chineses ultramarinos" eram olhados com dupla desconfiança: na China, eram potenciais agentes do decadentismo ocidental; fora da China eram suspeitos de serem "quintas colunas" do comunismo.
Os chineses são perseguidos, discriminados, tratados com suspeição, há séculos. Os casos mais graves ocorreram no Sueste Asiático. Cada episódio saldou-se por mortos, muitos, milhares. Na Indonésia de Suharto, na Tailândia, na Batávia holandesa em 1740, na Manila espanhola em 1603, são alguns exemplos. Programas de massacre indiscriminado, verdadeiros pogroms. Na base, o mesmo: os chineses são muitos, trabalham muito, enriquecem muito, apenas querem dinheiro, exploram os naturais, não têm lealdade "local". Em 1914, a publicação de um folheto num jornal tailandês inflamou os ânimos: os chineses são os "judeus do Oriente", como pragas de gafanhotos que exaurem as colheitas e, depois, mudam de poiso, só têm "lealdade racial", escondem um profundo desprezo por detrás da (interesseira) polidez. Autor? aparentemente, o próprio rei do país. Mas os primeiros paralelos entre chineses e judeus, na Ásia e na Europa respetivamente, data do século XVII, pela mão de viajantes europeus.
Funny, huh? Por isso, quando lerdes uma noticiazinha sobre uma nova "loja do chinês" e as reações indignadas dos comerciantes locais, sabei, pois, oh gentes, que do alto do penduricalho "oriental", muitos séculos de história e profundos (e atuais) problemas de segregação, integração e identidade, uma espécie de "vulcão adormecido" em muitas sociedades, vos contemplam.
P.S. - para mim, esta coisa dos "chineses ultramarinos" não é apenas curiosidade exótica; na verdade, é o meu projeto de pós-doc, um dos tais trabalhos, temáticas, investigações, assuntos, que não servem para nada, não exportam sapatos nem abrem caixas nos hipermercados.