O debate constitucional do Observador - (ii) - O móbil
Para além do que escrevi sobre o interlocutor e o contexto, importa analisar as causas que são apresentadas pelo Observador como justificando a organização nas suas páginas de um debate constitucional, de três sessões constituintes e, finalmente, de uma Nova Constituição (sublinho, pela sua importância, que o Observador antecipa as conclusões do debate concluindo que uma mera revisão não servirá).
É certo que pode dizer-se que qualquer jornal está dispensado de justificar a sua escolha pelo destaque de uma dada matéria, para mais quando ela tem a importância de um debate constitucional, mas, novamente, tal como o interlocutor e o contexto são relevantes para determinar a capacidade persuasiva dos argumentos - que é uma das suas principais funções - também o móbil que justifica a escolha de um conjunto de argumentos é relevante para os apreciar.
Para podermos analisar as razões temos que ler o que nos é apresentado como tal e interpretar. É isso que fazemos em qualquer debate. Os materiais que temos à nossa disposição são essencialmente um vídeo de David Dinis, um Editorial intitulado "Todos somos constituintes" e ainda um artigo intitulado "Que projeto é este?", embora outros materiais existam e possam vir a surgir, como por exemplo este Explicador.
David Dinis parte de uma constatação mais ou menos evidente sobre a realidade portuguesa de que estamos sempre em "processo de revisão em curso". Mas isso nada nos diz sobre se esse processo contínuo é algo de bom ou de mau. David Dinis apresenta-o como algo de bom, que num sentido coloquial de revisão permanente em quanto debate é perfeitamente aceitável, mas que não resiste a uma interpretação diversa quer jurídica, quer política sobre a própria revisão do texto constitucional, enquanto momento em que, enquanto comunidade deixamos de discutir e alteramos normativamente o nosso modo de viver em conjunto. E isto, por um lado, porque a Constituição claramente prefere a estabilidade e a maturação, ao escolher o intervalo de 5 anos entre revisões constitucionais e ao dificultar muitíssimo as revisões extraordinárias (ou seja, a qualquer momento), exigindo uma grande maioria de portugueses que a queira; e, por outro, porque os próprios portugueses - através dos seus representantes - em 39 anos apenas pretenderam rever ordinariamente a Constituição por 4 vezes, o que demonstra que mesmo que se acabasse com as revisões ordinárias, permitindo a revisão a todo tempo por maioria de 2/3 dos deputados, não era certo que tivéssemos um permanente "processo de revisão em curso". Há depois os argumentos comparados, claro. Em regra, olhando à nossa volta, o debate constitucional é contínuo mas as Constituições são documentos estáveis com poucas revisões ou com revisões de pormenor. Existem, pois, boas razões, como as que apontaram os autores do projeto de revisão constitucional que o Observador toma como ponto de partida para a discussão sobre uma Nova Constituição, para não se realizar uma revisão constitucional - e, por maioria de razão, para não carecermos de qualquer Nova Constituição - embora existam muito boas razões para mantermos aceso o debate constitucional e até para corrigirmos erros e desatualizações da Constituição.
Isso mesmo é, aliás, confirmado pelas restantes palavras de David Dinis, onde destaco "a necessidade de questionarmos permanentemente como queremos viver, como nos queremos organizar, e já agora de que formas nos queremos unir sobre um mesmo texto constitucional". Isto dito, é preciso sublinhar que uma Constituição é algo perene ou pelo menos tão perene como o regime político que fundamenta e conforma. Por isso, podemos e devemos questionarmo-nos, mas devemos ter muito presente que tudo o que seja propor uma Nova Constituição, como se propõe fazer o Observador, significa afirmar a necessidade de mudarmos de regime político. Uma mudança tão radical que uma revisão constitucional não serve. Aliás, o Observador diz que a proposta que apresenta é apenas um bom ponto de partida para a discussão que concluirá com a proposta da referida Nova Constituição.
Ora, está bom de ver que a mudança de regime político não é algo que aconteça de ânimo leve. Por isso é tão importante distinguirmos entre uma Nova Constituição e uma Revisão Constitucional. A primeira pressupõe que queremos alterar todas ou algumas das ideias fundamentais em que assenta a nossa comunidade política. Que direitos temos? Quem detém o poder? Repartido entre quem? A História demonstra que uma Nova Constituição é normalmente resultado de uma grande dissonância entre o poder e a maioria dos cidadãos ou entre estruturas esclerosadas e incapazes de continuar a assegurar a manutenação e o progresso de uma comunidade política. É isso que está em causa quando pensamos numa Nova Constituição e quando avaliamos a Constituição vigente. Daí que faça sentido perguntar se esse é o caso - o caso para uma Nova Constituição - ou se aquilo que esteja ultrapassado na Constituição não pode ser democraticamente alterado pelas regras propostas pela própria Constituição.
Para o Observador a resposta está dada. Uma Nova Constituição é precisa. O debate parte subordinado a essa premissa. Ainda que aceitemos - o que seria estranho face ao que está escrito - que o Observador se está a referir a uma revisão constitucional tão profunda que equivale a uma Nova Constituição estaríamos perante o mesmo problema: teríamos algo revolucionário, uma transição constitucional mais do que uma mera revisão constitucional. Nada há de errado quanto a isto. É salutar. O que já resulta estranho são as razões apontadas para se propor algo tão radical. Pensar-se-ia que as circunstâncias seriam dramáticas. Que uma larga porção da sociedade portuguesa estivesse à mercê de catastróficas circunstâncias provocadas pela discordância entre a vontade popular e o que está preceituado na Constituição. Mas para o Observador não é bem isso. Aí podemos ler que quase todos os protagonistas da nossa vida pública dão a entender que sim [que há um problema com a Constituição]. Mesmo que isso fosse verdade seria contraditório com algo que o próprio Observador reconhece. Num país com elevadas taxas de abstenção, em que portanto a comunidade política tem um problema de consonância com os seus representantes, em que todos se queixam da falta de músculo da sociedade civil, qual é o valor e a representatividade dos "protagonistas da vida pública"? Serão os nossos protagonistas representativos? Não devemos confundir protagonistas com legítimos representantes. Ou serão os nossos protagonistas sobretudo aqueles que representam uma fação que se sente descontente com o que não pode fazer politicamente com a Constituição em que se move?
Lendo com mais atenção percebe-se que o Observador labora num erro pois imputa a um certo grupo de protagonistas queixas contra a Constituição quando na verdade esse grupo tem queixas é contra quem ataca a Constituição. Escreve-se no Observador que há protagonistas que dão a entender que a Constituição é um problema "quando reclamam que a Constituição está a ser atacada e violada sistematicamente por governos e maiorias parlamentares". Lamento, mas do que estas pessoas estão a reclamar é desses governos e dessas maiorias parlamentares. Não da Constituição. Sejamos honestos e rigorosos. Daí que sobrem os que "se queixam de que a Constituição está a ser usada por aqueles que querem resistir à adaptação do Estado e da economia portuguesa a um mundo mais aberto e competitivo". Estas pessoas têm toda a razão em queixar-se da Constituição. Mas então, pergunta-se, o que os impede de convencer os portugueses a elegerem dois terços dos deputados à Assembleia da República, que é exatamente o que seria preciso para alterarem a Constituição nesse sentido? O que impede os críticos da Constituição de jogarem ao jogo democrático?
Creio bem que, como pressuposto de toda a leitura que se faça da iniciativa de debate constitucional do Observador, desde o projeto de revisão constitucional que toma como ponto de partida até à Nova Constituição que venha a surgir, passando pelos vários artigos, explicações e perguntas que vai publicando, mais do que um debate neutro sobre a Constituição que temos, há uma posição de princípio contra a Constituição e contra as suas opções políticas de fundo, nomeadamente no plano dos direitos sociais. Este aspeto é essencial.
Criticar uma Constituição por ela ser má tecnicamente, estar desatualizada ou conter contradições é algo que tem um valor, merece um juízo e gera uma discussão completamente diferente daquele que é gerado por considerarmos que a Constituição é politicamente inaceitável. O debate provocado pelo primeiro é essencialmente técnico. Ele vive de algo a que o Observador tem dado pouca atenção e a que aqui voltarei amiúde: a comunidade de juristas constitucionais. É assim em todo o lado, como é assim em todas as ciências. São os cientistias que asseguram a integridade das ciências. Já a discussão em torno do programa político de uma Constituição é uma discussão para os cidadãos e para os seus representantes. No contexto da atual Constituição essa discussão é livre e pode provocar mudanças se 2/3 dos representantes dos portugueses se colocarem de acordo. Parece uma maioria razoável quando se trata de decidir o pacto que regula a nossa vida em sociedade e o modo como o atualizamos.
Daí que a batalha pela Constituição política-ideológica deva ser separada ao longo deste debate da discussão técnico-jurídica. Temo bem, a ver pela amostra de perguntas diárias que o Observador vem publicando, que este jornal se esteja aproveitar do epifenómenos históricos da Constituição (comuns a todas elas) e da normal ignorância técnica dos cidadãos para colocar tudo no mesmo saco e qualificar também como erro - ou pelo menos excesso desvairado - as opções políticas livres que estão colocadas na Constituição e que aí se têm mantido intocadas - e assim renovadas - ao longo de várias revisões constitucionais, com respeito pelo princípio democrático.
Daí que parta para a análise dos problemas levantados em torno da Constituição e para a análise do projeto de revisão constitucional caucionado pelo Observador convencido de que este jornal mais do que ter como móbil a crítica aos aspetos desatualizados e menos corretos da Constituição como justificação para uma revisão constitucional que os corrija, parte de uma posição de crítica ideológica às opções políticas da Constituição. Algo que sendo completamente legítimo - sobretudo para um jornal alinhado à direita - exige dos interlocutores, de todos nós, uma especial colocação e crítica face aos argumentos que surjam em todos os textos deste jornal. Do que se trata a propósito da Nova Constituição do Observador é ainda e sempre de discutir política, não de corrigir tecnicamente uma Constituição. Do que se trata é, afinal, de justificarmos os 2/3 de representantes democráticos que precisamos para manter a Constituição como está, para a melhorar tecnicamente ou para alterar o quadro ideológico (bastante amplo, na minha opinião) que ela permite aos Governos que se formam à sua sombra. Esta evidência, sobretudo escrita, não deve impedir-nos de a reafirmar. Esquecê-lo ou confundi-lo terá consequências nefastas. Os meus posts seguintes serão sobre estas questões.