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O Islão, nós e eles

A prestação televisiva da Marisa Moura no último dia de 2014 é um bom exemplo daquele ridículo que deixa um travo amargo. Passado o riso e a chacota à conta da cascata de disparates, segue-se a ressaca. Mais do que uma mera aparição infeliz e desajeitada, o episódio revela algo muito mais profundo, a vários níveis: a) a nesciência palerma e arrogante de quem vai à televisão escudada atrás do estatuto de jornalista e não se preocupa em preparar-se minimamente para a tarefa; b) o nível zero de exigência por parte de quem coordena o espaço informativo e de quem conduziu a entrevista; c) o baixo nível de crítica do público, já anestesiado pela banalidade televisiva que constituem os disparates de comentadores.

Mais grave ainda: falar de política, comentar a crise, as medidas do governo ou as manobras da oposição é algo que oferece, digamos, um notável grau de "clareza": qualquer espetador está mandatado, enquanto cidadão, para concordar ou discordar e para emitir a sua opinião e dispõe de ampla informação, porque se trata de realidades que a todos afetam. Agora sobre o Islão, "essa coisa do outro mundo", como diz a Safaa Dib? Não se exigiria um mínimo de cuidado pedagógico a uma jornalista - que, ironicamente, mencionou precisamente o desconhecimento que existe por cá acerca de tudo o que envolve esta temática, sem se aperceber de como contribuiu para aumentar essa ignorância - ?

Em Portugal, Islão significa várias coisas, todas estereotipadas e negativas: intolerância, mutilação genital feminina, terrorismo, atentados, 11 de setembro, barbudos, guerra, burqas, "Estado Islâmico", atrocidades. Ponto final. Talvez fosse bom começar por dizer que é uma religião, em tudo idêntica ao cristianismo e ao judaísmo (que respeita e que se assume, aliás, como continuador). Idêntica? Sim. O mesmo Deus (único), a mesma origem geográfica, a mesma conceção do Homem, do tempo e da verdade "revelada", a mesma visão do mundo, da realidade material e espiritual, o mesmo substrato civilizacional e cultural: o Médio Oriente e o Mediterrâneo. Quem conhece o hinduísmo ou o budismo sabe do que falo. Diferenças? sim, de pormenor, no culto, na teologia, nos dogmas, na prática do quotidiano. Arestas de um tronco comum. Um pinheiro e um carvalho são muito diferentes? Depende se olharmos para cada um ou para o espaço de uma floresta e o compararmos com uma savana.

O que há, sim, são sobretudo tensões históricas, ligadas à turbulência das sociedades humanas. Uma Europa cristã que cresceu no interior de um império já existente (o romano), um Islão que, pelo contrário, nasceu do nada e expandiu-se, naturalmente à custa dos vizinhos. O resto, o longo conflito entre os dois blocos, resultou do facto de ambas as religiões serem exclusivistas, ou seja, proclamarem a sua verdade revelada como a única válida. Mas a guerra, que eu saiba, não surgiu com o nascimento de Cristo ou com a Hégira.

Uma das ideias mais enraizadas que por cá existe acerca do Islão é o seu alegado monolitismo. Já se sabe, não há frase racista mais típica do que dizer "os pretos [ou chineses, ou quaisquer outros] são todos iguais". Aqui é um pouco o mesmo. Como ninguém conhece nada do Islão, porque temos uma pequena e (demasiado, a meu ver) discreta comunidade muçulmana e porque o que sabemos é aquilo que nos entra pelos olhos adentro pelas televisões, sempre pelos piores motivos, também eles "são todos iguais". Geralmente dividem-se entre "moderados" (aqueles que não levantam a voz aos americanos e ao Ocidente em geral e que vivem lá quietinhos nos seus países, atrasados e cheios de inveja) e os "radicais" (os que destilam ódio a tudo o que mexe). Saddam, por exemplo, era "moderado" enquanto bateu nos ayatollahs iranianos; depois passou a "radical", com temíveis armas químicas e tudo; os sauditas eram "radicais" quando causaram a crise de 1973, depois passaram a "moderados", mas desde o 11 de setembro não se sabe bem. A dinastia Assad era "radical" quando alinhava com a URSS e assim se manteve; mas agora, com a explosão do Daesh, se calhar até não. O Khadafi era "radical", depois mataram-lhe a filha e ficou "moderado", não percebo bem porque é que se revoltaram contra ele. Os iranianos, esses, só foram "moderados" quando tiveram um xá, que até era um gentleman civilizado e com maneiras. Depois tomaram o gosto ao radicalismo islâmico e nunca mais se endireitaram. Os palestinianos? coitados, se não tivessem aquela mania de querer a sua terra de volta até que escapavam, também há uns que são "moderados" (os que amocham) e os "radicais" (os outros todos). Estou baralhado, são todos iguais, era mas é acabar com aquela seita toda, certo?

Não há religião mais dividida do que o Islão. A primeira grande cisão é, precisamente, entre sunitas e xiitas, mas em cada um destes dois grandes "ramos" existem muitas divisões, nem sempre claras, nem sempre definidas. Se a este fundo religioso juntarmos o confuso caldo de culturas, línguas, tradições (pré-islâmicas), migrações, conflitos, intervenção europeia, traçado de fronteiras, rivalidades e antagonismos profundos, formação e fragmentação de impérios, Israel e, por fim, petróleo, temos uma pálida ideia do que é o Médio Oriente, o coração do Islão. Nem falo de outras regiões, como o subcontinente indiano ou o mundo malaio-indonésio. Foi também por isso que a prestação televisiva da Marisa Moura foi, sob todos os pontos de vista, lamentável: porque balbuciou umas banalidades, reproduziu o velho estereótipo imbecil (curiosamente muito apregoado pelo Daesh e pela Al-Qaeda) de que tudo se resume a uma revisitação das Cruzadas e porque nem sequer a clássica, fácil, simples e básica divisão entre xiitas e sunitas conseguiu explicar. Pelo contrário, foi profundamente ofensiva para qualquer muçulmano: imagine-se um barbudo qualquer dizer numa televisão árabe que os católicos são os descendentes de Constantino, um daqueles imperadores romanos corruptos e que viviam rodeados de luxo e de ostentação, precisamente o que Jesus Cristo combateu. Seria mais ou menos equivalente. Ah espera, ninguém se admirava, porque nesses países são todos atrasadinhos e tapados, não têm liberdade de imprensa e as televisões vivem controladas pelo radicalismo, não é? Ainda bem que por cá, não.

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