o taliban da paróquia
Esperei dois dias. Nada. Ninguém reagiu. Ninguém parece ter ficado chocado. Ninguém parece, sequer, ter reparado. Eu, sim. Reparei e fiquei chocado. E reajo agora: a crónica do Miguel Sousa Tavares do passado sábado, no Expresso ("Em nome de Deus e em nosso nome") é uma declaração de ignorância e um insulto. De ignorância acerca do que é o Islão. De insulto a todos os muçulmanos e a todos os árabes (que, aliás, mistura e faz equivaler de uma forma absolutamente leviana). Eu compreeendo e partilho a indignação, a revolta, o medo e a impotência perante o que se passa na Síria e no Iraque. Mas entendo que não vale tudo, que não se pode levianamente largar impropérios ofensivos sobre uma religião, a maior do mundo, e os seus seguidores, ou sobre todo um povo. É o que faz MST. Que não é um qualquer pregador de uma madrassa de uma região remota a falar para uma multidão oprimida, pobre e analfabeta. É um jornalista e escritor culto e informado, com pleno acesso a dados e a informação, e que escreve no maior jornal de um país europeu.
MST diz: "Para todo o lado onde olhamos, há uma guerra santa do Islão contra o mundo ocidental". Das duas, uma (mais provavelmente, ambas, infelizmente): ou sofre de uma miopia atroz ou permite-se escolher como representantes do Islão a quadrilha de bandoleiros que se auto-intitula pomposamente "Estado Islâmico" ou "Califado". Pois eu respondo que o Islão (tomado como a umma, a comunidade dos crentes) está espalhado em todo o mundo, que o país com mais muçulmanos está muito a leste da Síria e do Iraque, e que não me consta que haja ali, ou mais perto, ou ainda mais longe, qualquer "guerra contra o mundo ocidental". Não há nenhuma guerra santa do Islão contra quem quer que seja; há, sim, alguns elementos, que se dizem muçulmanos, que autoproclamaram uma guerra não só contra o mundo ocidental mas contra outros muçulmanos, outras religiões, todos e mais alguém que não encaixe na sua perceção limitadíssima de Humanidade. Eles. Esses. Mas nós, que não somos como eles, como esses, temos obrigação de não cometer os mesmos erros básicos, de não agir segundo idênticos preconceitos assentes na ignorância e no ódio. Cada um escolhe os seus exemplos e elege quem quer para porta-voz do Islão. MST escolhe Osama bin Laden, os Taliban e os jihadistas. Eu, desculpem, permito-me escolher Malala Yousoufzai e as mulheres curdas que resistem em Kobani. Não são menos Islão do que os outros, muito pelo contrário. Até penso que são muito mais Islão do que os Taliban e os mercenários da Síria e do Iraque. Também posso eleger S. Francisco de Assis e não Godofredo de Bulhão (para quem não sabe, o sanguinário líder da 1ª Cruzada e 1º rei de Jerusalém) como exemplos do Cristianismo. Eu e, espero, muitos mais. MST não, certamente.
Mais adiante, profere estas incríveis palavras: "não deve ser por acaso que, pensando nas últimas décadas, não me ocorre o nome de um músico, um físico, um cientista, um matemático, um criador árabe a quem a humanidade deva qualquer coisa." De facto, acredito que não lhe ocorra. Acredito que não conheça. Duvido, sequer, que tenha procurado. Nem um Prémio Nobel? Assim recente? Ah! Nem Malala nem Yunus são árabes, é um facto. Mas MST não estava a falar de árabes, embora tivesse escrito a palavra. Escreveu "árabes" mas queria dizer "muçulmanos", porque o seu texto é sobre o Islão, não sobre o mundo árabe. Para ele, é o mesmo. Nem lhe ocorre que há árabes cristãos, e não são tão poucos como isso. E sobre o Alcorão, diz que é "um texto sem qualquer sentido". Eu, se fosse muçulmano, ficava ofendido; se fosse árabe, ficaria indignado. Ninguém reagiu, ninguém deu por nada. Alguém que experimente escrever um dia algo de semelhante acerca de outro povo (ou dos crentes de outra religião) e verá a diferença. Por exemplo, acerca dos judeus ou da Torah. Ou do Antigo Testamento. Cairá o Carmo e a Trindade e falar-se-á logo de antissemitismo, com o Facebook inundado de discussões e de testemunhos indignados. Mas sobre os árabes, nada. Sobre os muçulmanos, ainda menos. Não há quem os defenda contra a cegueira de quem se sente iluminado. Sim, porque não são só os Taliban que se julgam iluminados e que usam a ignorância, a própria e a alheia, para pregar a intolerância e propagar o ódio.