Porque é que no Henrique Raposo o disparate é natural?
O Henrique Raposo escreveu um livro sobre o “seu” Alentejo. Tem todo o direito, não pode, ou não deve, é pegar em assuntos do domínio da saúde pública com uma perigosa leveza.
A questão não pode ser “Porque é que no Alentejo o suicídio é natural?” mas “No Alentejo o suicídio é “natural”?” – e natural entre aspas, começando por definir natural. Desse ponto de vista, aliás, o texto é verdadeiramente fantástico. A pergunta inicial, que serve de título, assume como verdade que o suicídio é natural no Alentejo para terminar a justificar que o suicídio no Alentejo é monocausal e determinado pela cultura e suas ramificações. Estamos conversados.
O suicídio racional existe. Discuti-lo implica contrapor a razoabilidade da escolha da morte por uma mente sã face a motivos lógicos versus a morte auto-infligida por discernimento alterado por patologias, emoções intensas, impulsividade, etc. Não foi o suicídio racional que Henrique Raposo optou por discutir: não o refere uma única vez no texto, não o define, não apresenta dados sobre ele. E se é verdade que existe também é verdade que representa uma franca minoria (inferior a 5%) da realidade suicida no mundo: a larguíssima maioria dos suicídios surge em contexto de doença mental e, por isso, é verdade o que me dizia um amigo e colega, homem que tem dedicado parte da sua vida clínica a estas temáticas, “Uma pessoa que se suicida não é uma pessoa que está a escolher digna e livremente o modo de morte nem as circunstâncias da mesma quando ela se avizinha e nada para o sofrimento físico e o horror do não-controlo último. É uma pessoa sem alternativa face a um comboio mental multideterminado que o transcende. E que fica aliviada quando sobrevive e é tratada e melhora.”. No Alentejo como em todo o mundo.
As observações sobre a "amoralidade" local face ao suicídio são, diagamos assim, engraçadas mas a cereja em cima do bolo chega com a afirmação de que “No Alentejo, a eutanásia não é um debate, é um modo de vida; o suicídio alentejano não é um ato individual, é uma prática colectiva.”. Não me vou alargar em comentários, apenas deixo um apontamento e duas perguntas.
Decide-te, Henrique, como é que um sítio em relação ao qual defendes que o suicídio é monocausal e culturalmente determinado tem na eutanásia um “modo de vida”? Em última análise não precisa dela. Vês no que dá baralhar conceitos que não dominamos? De caminho mostra-me um, apenas um, caso de suicídio coletivo no Alentejo. Obrigada.
A pesporrência intelectual é uma coisa triste. Todos temos o direito de romancear os nosso Jacintinhos e os nossos medos e receios, não podemos é apresentar as nossas interpretações como factos e muito menos fazermos perguntas ajustadas às respostas que já demos ab anteriori.
Adenda: Lembrei-me de outra coisa, ao lado da temática principal do post, relativa a esta afirmação "os Manuéis Palitos fazem parte da paisagem humana do norte, não do Alentejo". Pois, pois, há outros Manuéis que matam a mulher, a filha e a neta.
Nota: vou gostar de perguntar aos(às) alentejanos(as) o que sentem ao ler isto "(...) o reencontro traumático ocorre quando regressam à aldeia os irmãos que migraram para Lisboa; os irmãos que ficaram olham para os irmãos lisboetas e sentem que também podiam ter tido aquela roupa fina e aquela mulher decotada. (...)".