Querer meter o Rossio na Betesga
(texto longo e em que provavelmente serei criticado à esquerda e à direita)
Uma das mais conhecidas falácias argumentativas, das muitas a que podíamos reconduzir os argumentos que têm sido utilizados para discutir a questão da denúncia (não renovação) de alguns contratos de associação como uma questão de liberdade de escolha, é a velha ignoratio elenchi.
Na verdade, o povo, na sua infinita sabedoria, refere-se às vezes a meter o Rossio na rua da Betesga, o que, como vou mostrar de seguida, é bastante certeiro no que toca à discussão falaciosa que alguns setores têm promovido.
I - A Betesga
Os contratos de associação, enquanto conceito jurídico com este nome, nascem em 1980, mas são antecipados na Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo, de 1979, quando no artigo 8.º/2/a) se prevê que "Na celebração de contratos entre o Estado e as escolas particulares e cooperativas são consideradas as seguintes modalidades: [...] 2. a) Contratos com estabelecimentos que, integrando-se nos objectivos e planos do Sistema Nacional de Educação e sem prejuízo da respectiva autonomia institucional e administrativa, se localizem em áreas carenciadas de rede pública escolar".
Posteriormente, através do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de novembro, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, prevê-se, no seu artigo 12.º/1, que "O Estado celebrará contratos com escolas particulares que, integrando-se nos objetivos do sistema educativo, se localizem em áreas carecidas de escolas públicas". Mais claro do que isto é difícil. Ainda assim o artigo 14.º/1 insiste, para que dúvidas não restem: "Os contratos de associação são celebrados com escolas particulares situadas em zonas carecidas de escolas públicas, pelo prazo mínimo de um ano" (destaques meus). Novamente, muito claro.
Até hoje o sentido deste tipo de contratos não havia merecido qualquer contestação pública e, muito menos, na literatura especializada. Durante décadas o que a lei diz foi entendido como uma concretização do n.º 1 do artigo 75.º da Constituição, que preceitua: "O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população".
Há pessoas que, pura e simplesmente, não conseguem perceber o que acabei de explicar nos 2 parágrafos precedentes. Ou, pelo menos, comportam-se como tal. Mas há outras que percebem. E replicam.
Argumentam certas pessoas que, não obstante o contrato de associação ter a noção clara que está citada acima e servirem para concretizar a norma constitucional que está também citada acima, tanto o conceito como a norma constitucional podem (devem?) ser interpretados de modo diferente. Isto à revelia do que a literatura especializada diz sobre o assunto:
a) "O facto de em certo domínio existir ou poder vir a existir uma escola particular ou cooperativa não isenta o Estado do cumprimento da obrigação constitucional [do artigo 75.º/1] [...] carecendo de fundamento constitucional o recorte de um dever jurídico do Estado garantir um hipotético princípio da equiparação entre o ensino público e o ensino privado". Mais: "O facto de numa determinada área de ensino ou região já haver uma escola privada ou uma escola cooperativa, sem que exista uma escola pública, não é motivo para não criar esta; é, antes, prova de que há uma necessidade pública de ensino que não encontra resposta, como devia, no sistema público de ensino [...] Sempre que haja défice de oferta no ensino público (por incumprimento do Estado do seu dever de criar as escolas necessárias), o Estado não deve ficar isento do seu dever de prestação do ensino, podendo e devendo para esse efeito acordar com escolas privadas (particulares e cooperativas) a prestação do serviço público de ensino, em condições iguais às das escolas públicas (programa, gratuitidade, avaliação, etc), mediante a devida compensação e controlo. Neste contexto se inserem também os contratos de colaboração - contratos de prestação de serviços - entre o Estado e as escolas particulares e cooperativas em áreas carenciadas de rede escolar pública (cfr. DL nº 553/80, de 21-11)"
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República portuguesa anotada, Vol. I, 4.ª edição, pág. 904)
b) "Para nós, as escolas com contratos de associação não se configuram como concessionárias do serviço público de educação; elas atuam na esfera privada, prestando um serviço de ensino a quem as procure. O Estado assume-se, nesse domínio, como um "cliente da escola", contratando no âmbito do direito privado. Pretendendo-se enquadrar os contratos de associação no domínio das formas de colaboração de particulares com o Estado, diremos, então, que eles remetem, em rigor, para um esquema de mera privatização funcional, tipicada na aquisição de um serviço privado que substitui a prestação de um serviço público ("troca" de uma actividade pública por uma privada)".
(Pedro Costa Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, pág. 503)
Isto é a Betesga. Uma questão simples, cirúrgica, circunscrita. A Constituição manda criar uma rede de estabelecimentos públicos de ensino; a lei permite contratar escolas privadas para suprir a falta dessa rede; o Governo pode livremente denunciar os contratos celebrados para suprir essas falhas quando elas deixem de existir. Isto é claro. Está previsto desde o início. As escolas contratadas sabem deste contexto, deste enquadramento legal. Eis a Betesga. Onde há quem queira, através de uma discussão completamente diferente e que tem em comum apenas o artigo 75.º/1 da Constituição, meter o Rossio.
II - O Rossio
Ao lado da questão de denúncia/não renovação de contratos de associação quando estes deixam de ter justificação, por terem desaparecido as falhas da rede que visam suprir, pode discutir-se a questão da liberdade de escolha do estabelecimento de ensino público ou privado, no sentido de liberdade de apenas pagar um dos sistemas, uma vez que a liberdade de escolha já existe nos termos do já referido artigo 75.º da Constituição, desta feita, n.ºs 1 e 2.
São questões distintas em tudo, desde logo porque a primeira pressupõe necessariamente a aplicação da norma constitucional e é uma sua decorrência enquanto mecanismo de gestão e a segunda pressupõe a sua alteração ou manutenção e por isso implica uma discussão jurídico-política com incidência numa potencial revisão constitucional.
Aliás, não por acaso, PSD e CDS, na gorada revisão constitucional de 2010/2011, propunham a alteração do artigo 175.º para prever claramente a expressão "liberdade de escolha" no que só pode ser interpretado como liberdade para apenas pagar por um dos sistemas, numa lógica de utilizador-pagador, e o PCP propunha o alargamento da rede pública universal e gratuita ao pré-escolar.
Esta é uma outra discussão, ideológica, mas também técnica e complexa. Devo dizer que, em primeiro lugar, sou favorável a um modelo que permita a liberdade de opção entre escolas públicas e privadas, independentemente do dever de contribuição para um sistema público universal. Ou seja, o que já temos.
E porquê?
A razão pela qual prefiro um sistema de escolha é auto-evidente: auto-determinação, como valor essencial assente na dignidade da pessoa humana.
A razão pela qual quero que ainda assim exista um sistema público, mesmo que eu não o utilize, prende-se com um dever de solidariedade elementar em que acredito e pelo qual me bato.
O significado de uma República assente na prossecução de um interesse público conformado por determinados valores é cada um de nós saber o que pode esperar do Estado e das suas opções.
Isto significa, no sistema educativo, que a existência de um sistema público garante-me que todos terão uma escola mesmo que a iniciativa privada não o ache recompensador. Para isso é preciso o investimento de todos.
É algo com que convivemos tranquilamente, mesmo em mercados liberalizados. Pense-se num caso tão simples como o correio, um mercado concorrencial. Nem por isso deixa de haver um serviço postal universal, pago por todos nós, mesmo os que não usam os correios ou não usam a empresa de correios concessionária do serviço postal universal. O importante é que o Estado, neste caso através de um contrato de concessão, garante que todos poderão aceder ao serviço de correio. Isto resulta de uma decisão política, que pode ser alterada, através de debate democrático.
O mesmo deve acontecer, quanto a mim, no sistema educativo, nos moldes que apresentei: o Estado devia assegurar um serviço escolar universal (para persistir na comparação com o exemplo do serviço postal universal), para o qual os meus impostos serviriam, independentemente de escolher uma escola pública ou privada.
Caso optasse por esta última, teria uma dedução fiscal significativa que compensasse parte do custo que retiraria ao sistema público e na medida da procura desse mesmo sistema público.
Esta é, sem dúvida uma opção ideológica, onde fraternidade e solidariedade se equacionam com a poupança de custos a título individual (discussão que vemos tantas e tantas vezes reproduzida na saúde ou na segurança social).
E daí a importância da dedução fiscal pela escolha de escolas privadas e a minha não defesa, por exemplo, do cheque ensino. Na opção que defendo, as famílias, mesmo que escolham inequivocamente uma escola privada têm ainda assim que suportar com os seus impostos um sistema público.
Além disso defendo, em segundo lugar, o que já implicaria uma alteração constitucional, que o Estado possa escolher, com obrigação de manutenção por um dado período de tempo, não ter oferta pública assegurada diretamente por si, numa dada zona, e contratar essa oferta a escolas privadas, desde que fosse assegurado que o serviço seria exatamente igual ao serviço prestado em escolas públicas no que diz respeito a certas práticas e objetivos, o que é o aspeto mais difícil de assegurar estando em causa a educação (pense-se no caso de escolas confessionais).
Este serviço público universal, por ser público, teria que seguir as regras públicas essenciais, podendo inovar-se nesse quadro, sejam as escolas públicas ou privadas. Este aspeto é fundamental e é o pilar do republicanismo: os pais que querem e confiam num sistema público de ensino contam com as características desse sistema público, mesmo que a única oferta seja uma escola privada. Ora isso é algo que, mesmo contratando escolas privadas para substituirem a ausência de escolas públicas, é sempre algo difícil de conseguir, como demonstra qualquer atividade regulada, mas que é particularmente sensível no caso da educação, onde a escolha entre opções no mercado não se faz como a mesma flexibilidade do que noutro tipo de mercados (o postal, por exemplo) e em que os valores em causa não são os mesmo que estão normalmente associados a uma atividade económica concorrencial (a educação não é uma mera utility).
Sublinho que seria uma escolha do Estado, ou seja, de toda a comunidade política, quanto a algo que diz respeito, potencialmente, a toda a comunidade política. Pense-se num município que lance um Título de Impacto Social para a criação de uma escola do primeiro ciclo que melhore os resultados escolares, em vez de ele próprio criar essa escola.
Evidentemente, seria necessário também ter regras quanto ao planeamento e antecipação na escolha da escola pública ou privada, uma vez que, devido à existência de economias de escala e vínculos contratuais, não é a mesma coisa, seja no sistema público ou nas escolas privadas, planear uma oferta para 100, 1000 ou 10.000 alunos numa dada cidade ou região (isto seria um critério para determinar o alcance da referida dedução, a atualizar numa dada janela temporal).
Mas tudo isto que acabo de defender, que é apenas um esboço, que é complexo, que está sujeito a debate e contra-debate, a naturais afinações e dissensos, não implica que negue a realidade e que esqueça que implicaria uma revisão constitucional. Isto que acabei de defender é o meu contributo para discutirmos qual deve ser o futuro do Rossio. Não é uma forma falaciosa de querer meter o Rossio na Betesga.
Não é uma forma de confundir as pessoas, contaminar o debate público em torno da denúncia de contratos de associação, no quadro constitucional e legal que temos, agora, e assim dificultar um outro debate já de si complexo, como muitos querem fazer.