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romancing the interview: a teoria da entrevista como mascarada e do jornalista como agente provocador, por josé rodrigues dos santos

josé sócrates tem um espaço de comentário na rtp1, para o qual foi convidado pela estação. nesse espaço, semelhante ao de muitos outros políticos -- as tv portuguesas têm esta particularidade, a de privilegiar o comentário político de políticos --, um jornalista conduz o programa, introduzindo temas e fazendo uma ou outra pergunta, mas quem na verdade dirige o espaço e define temas e tempos é o comentador. de tal modo que já aconteceu vermos comentadores a dizerem coisas que toda a gente sabe que são falsas -- como marcelo a imputar ao governo de sócrates o corte de meio subsídio de natal, em 2011 -- e o pivot, em vez de contrariar de imediato, dizer algo do género 'ó professor, por acaso tinha outra ideia'.

 

é claro que, como espectadora e como jornalista, há questões que me parece obrigatório colocar perante aquilo que me surge como um erro ou uma contradição de um comentador que tem um histórico político/público, e várias vezes me senti frustrada ao ver que o pivot/jornalista não o faz. mas decerto não espero que o espaço de comentário 'assinado' por uma determinada pessoa (qualquer que esse pessoa seja) seja transformado numa entrevista. e não espero porquê? por um motivo simples: porque há um formato estipulado, e estipulado pelo próprio canal, e não faz qualquer sentido, por uma questão básica de lealdade e lisura, subvertê-lo -- a não ser que a ideia seja acabar com o formato, e nesse caso haverá formas mais lisas de resolver o assunto.

 

imagine-se, por exemplo, que no quadratura do círculo carlos andrade resolvia 'entrevistar' costa sobre o seu consulado como presidente da câmara ou pacheco pereira sobre o tudo e o seu contrário que já defendeu desde que a gente o conhece. ou ana lourenço virar-se para louçã e começar a interpelá-lo sobre o be pós dito, a solução bicéfala que lá impôs, etc, em vez de o ouvir sobre os temas que este preparou para o comentário? ou maria joão ruela confrontar marques mendes com as críticas que fez à linha de redução do défice do governo de sócrates, quando agora é todo austeritário, e levar um dossier de declarações dele de quando foi presidente do psd e levar o tempo todo a citar-lhas? toda a gente acharia estapafúrdio e sem sentido, não era? 

 

porém, pelos vistos, quando se trata de sócrates as regras que se aplicam a todos os outros não se aplicam. a rtp já veio manifestar-se 'em defesa' do seu pivot -- sem uma palavra para o seu comentador convidado, o que se regista, tanto mais que como é público e notório não lhe paga por opção deste, o que deveria em princípio ser visto como uma generosidade do mesmo a merecer reconhecimento e não tal ostensiva deselegância -- e o próprio rodrigues dos santos se 'justifica' no fb

 

começando pela rtp: a estação diz que 'o espaço não é só de comentário'. ora bem, convinha então explicar porque é que se chama 'a opinião de josé sócrates' e que está lá a fazer a assinatura dele (se calhar a rtp não reparou que a tinha lá posto e que com isso está a dizer que se trata de um espaço assinado, ou seja, 'com dono', como qualquer coluna de opinião num jornal). e que é que aquele espaço é além de ser de comentário/opinião, não quererão esclarecer? e por que raio só ao fim de um ano se colocou a questão, para a qual a estação parece ter acordado agora mesmo, e em relação a todos os comentadores/políticos, já que menciona também morais sarmento? vai transformar os comentários em entrevistas? entrevistas semanais? sério? e com temas à desgarrada, conforme o jornalista que calhar? ou numa semana é comentário e na outra semana, mudando o jornalista, é entrevista? dá ideia de que a rtp não pensou muito no assunto, não é? 

 

mas vamos a rodrigues dos santos. começa por afirmar que 'a isenção do jornalista não é obrigatória'. ainda mal nos tinhamos levantado do natural trambolhão da cadeira que esta frase ocasiona, já demos outro quando rodrigues dos santos exemplifica com o avante: 'Não faz sentido esperar que um jornalista do «Avante!», por exemplo, seja isento. A linha editorial do «Avante!» é claramente comunista e um jornalista que não a queira respeitar tem a opção de se ir embora. Há muitos casos que se podem encontrar de linhas editoriais que implicam alinhamentos (partidários, desportivos, ideológicos, etc).'

 

dá-se o caso de no artigo 14º do estatuto de jornalista (lei que rege a actividade dos jornalistas) se ler esta coisa: 'constituem deveres fundamentais dos jornalistas: a) Informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião.'

 

tem rodrigues dos santos motivo para estar confuso, como todos nós, ao constatar que apesar deste preceito legal tão claro publicações como o avante, ou canais como o benfica tv, são consideradas jornalísticas, empregam jornalistas e até os 'fabricam'. é um problema e um escândalo e deviamos estar todos empenhados em resolvê-lo, a bem do jornalismo. mas parece que há quem, como rodrigues dos santos, considere que é uma coisa, vá, natural: se és jornalista num jornal comunista ou numa tv do benfica, 'informas' com o objectivo de deformar (ou seja, de apresentar tudo numa luz favorável à militância/clubismo, ignorando o que não dá jeito, etc), e não há problema nenhum.

 

mas, vá lá, rodrigues dos santos diz que 'No caso da RTP, a linha editorial é de isenção.' menos mal. porém, logo de seguida, avisa-nos que 'nas entrevistas a isenção pode perder-se'. porquê? ora, por causa do profissionalismo do entrevistador. ora leiam: 'Nas entrevistas, no entanto, as regras podem mudar. Há dois tipos de entrevista: a confrontacional (normalmente a entrevista política) e a não confrontacional. Em ambos os casos a isenção pode perder-se, não porque o entrevistador seja pouco profissional, mas justamente porque é profissional.' dá o exemplo da vítima de violação e do violador (com o pormenor delicioso de tornar claro que acha que só mulheres podem ser violadas): não se tratam da mesma forma. uau -  a isto chama ele perder a isenção? enfim.

 

da violação e do genocídio, sem sequer uma paragem na banca, passa para a política: 'As entrevistas políticas são, por natureza, confrontacionais (estranho seria que não fossem e que jornalista e político tivessem uma relação de cumplicidade). Uma vez que o agente político que está a falar não tem ninguém de outra força política que lhe faça o contraditório (como aconteceria num debate), essa função é assumida pelo entrevistador. O entrevistador faz o contraditório, assume o papel de advogado do diabo. Portanto, o jornalista suspende por momentos a sua isenção para questionar o entrevistado.'

 

nesta altura dos acontecimentos, suponho que é natural que me questione sobre que raio acha rodrigues dos santos que é 'isenção'. é que esta ideia de que tem de fazer o papel de representante 'da outra força política' para 'fazer o contraditório' leva a crer que não percebe que o papel do jornalista é sempre o de colocar as perguntas que se impõem (de acordo com a informação que este deve ter/recolher sobre assunto/pessoa), independentemente de quem está à sua frente ser um político desta ou daquela força política, um acusado de genocídio, um banqueiro ou uma pessoa que foi vítima de violência. a ideia de que perante um político tem de vestir a pele dos seus opositores é ridícula: tem, isso sim, de fazer as perguntas que há a fazer, e isso não significa jamais perder a isenção -- a não ser que efectivamente envergue a camisola de um opositor, caso em que não só perde a isenção como a vergonha.

 

prossegue rodrigues dos santos, ainda mais claro no absurdo: 'Portanto, o jornalista suspende por momentos a sua isenção para questionar o entrevistado. Isto é uma prática absolutamente normal. O entrevistador não o faz para "atacar" o entrevistado, mas simplesmente para fazer o contraditório. Acontece até frequentemente fazer perguntas com as quais não concorda, mas sabe que o seu papel é fazer de "oposição" ao entrevistado.' eis o busílis no seu esplendor: rodrigues dos santos acha que um bom entrevistador, perante um político, deve transmutar-se em opositor político -- mascarar-se, portanto. ou seja, usar a propaganda e os argumentos dos opositores daquele político para o 'confrontar', em vez de fazer perguntas fundadas na realidade e na sua apreciação (porque, obviamente, um jornalista tem sempre um olhar subjectivo) da mesma. 

 

ao contrário do que rodrigues dos santos afirma, fazer uma entrevista confrontacional, ou seja, aguerrida, não é 'perder a isenção'. perder a isenção é precisamente o que rodrigues dos santos diz que deve ser uma entrevista a um político: assumir o discurso de outros. exemplo: uma pergunta não isenta é aquela que confrontasse sócrates com a subida do défice entre 2005 e 2010 (que é um clássico dos discursos do psd e cds), quando entre 2005 e 2008 o défice desceu notavelmente. uma pergunta isenta jamais poderá ignorar que nesse período de cinco anos existe uma descida do défice até à eclosão da crise, ou que na chamada 'década perdida' houve um período de crescimento. quem a faça ignorando a realidade está, de facto, a fazer propaganda e não jornalismo.

 

ora, como deve (deveria?) ser óbvio, o papel de um jornalista não é embarcar em propagandas, nem na do entrevistado nem da dos seus opositores, nem mascarar-se de 'opositor', como advoga rodrigues dos santos: é informar-se o melhor possível sobre os factos e basear neles as suas perguntas. e caso queira dar ao entrevistado oportunidade de responder às acusações dos seus oponentes, citá-las: 'x ou y acusam-no disto ou daquilo'. 

 

felizmente, a prática de rodrigues dos santos é muito melhor que a sua teoria, e de um modo geral as perguntas que fez a sócrates no domingo estavam ancoradas em afirmações ou actuações daquele enquanto pm. algumas foram muito bem metidas e fazem todo o sentido, e deveriam até ter sido feitas antes pelos anteriores pivots do espaço: eu tê-las-ia feito. contam-se entre essas a sobre a austeridade -- foi sócrates que começou a aplicá-la e portanto faz sentido confrontá-lo com isso e perguntar-lhe se está arrependido de ter assumido tão plenamente o discurso de merkel/sarkozy e a inopinada inversão da estratégia europeia em 2010 -- e a sobre os cortes dos salários dos funcionários públicos (que foi o seu governo a inaugurar, no orçamento de 2011), entre outras. acho que esse tipo de confrontação melhoraria o programa, neste caso como em todos os outros em que responsáveis políticos (tenham ou não sido responsáveis governativos) pontuam.

 

acho também que fazer essas perguntas não é incompatível com o espaço de comentário/opinião que sócrates tem. mas uma coisa é fazer uma ou duas perguntas a propósito de uma afirmação, outra transformar um espaço que é pelo canal intitulado de 'a opinião de josé sócrates' numa entrevista -- transformação que rodrigues dos santos, na sua 'explicação', assume completamente, desde o título da mesma -- 'RESPOSTA DE JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS AOS COMENTÁRIOS PUBLICADOS NESTA PÁGINA À ENTREVISTA FEITA PELO JORNALISTA A JOSÉ SÓCRATES, NO DOMINGO, DIA 23 DE MARÇO DE 2014, NA RTP1' -- a toda a argumentação sobre o que deve ser uma entrevista e qual o papel que o entrevistador deve assumir, até à parte em que fala do 'entrevistado' concreto. 

 

rodrigues dos santos acha -- e a rtp pelos vistos também -- que faz sentido fazer uma entrevista a sócrates? peçam-na e ponham-na no ar. querem entrevistá-lo todas as semanas? bom, é criar outro formato. agora, usar um espaço em que o convidaram para opinar e transformá-lo em entrevista é no mínimo feio e mal educado e no máximo suspeito; é uma mascarada. não é preciso pensar muito para perceber que assim é: se me convidarem para ir ao opinião pública de uma estação para opinar sobre o pelâme nas axilas da madonna, por hipótese, e quando me apanharem lá me entrevistarem sobre os livros que publiquei ou sobre o meu activismo pelos direitos humanos posso estar à vontade para responder e até achar bem mais interessante mas terei de manifestar surpresa por me terem trocado as voltas e questionar-me sobre o intuito desse engano premeditado.  

 

uma última nota: fui alertada para esta polémica por uma notícia que titula 'josé sócrates irrita-se', e, curiosa, fui ver o programa. para meu espanto, atendendo a que sócrates é notoriamente irritável, constatei com surpresa que pelo contrário, não só não se irritou como até usou várias vezes da ironia, recurso que não lhe era costumeiro e que evidencia uma evolução que aplaudo. e quando diz 'não vim preparado para isto' refere-se a não estar municiado com dados em relação a uma pergunta específica, e não à 'linha' adoptada pelo pivot, como várias notícias dão, capciosamente, a entender. aliás, não fez qualquer reparo a rodrigues dos santos quanto à perversão do formato, o que foi pena, porque seria interessante que este se tivesse explicado ali, em vez de fazer testamentos patéticos no fb.

 

já agora, concordo com a penélope: sócrates saiu-se muito bem nas respostas, evidenciando uma capacidade de encaixe e de réplica inegáveis -- costumeira a segunda, muito menos a primeira. 

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