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“Sabemos que direitos humanos sempre houve, só que … não eram de todos os humanos.” - José Pedro Monteiro

A propósito dos textos de Souto Moura e Paulo Almeida Sande, hoje, no Público e Observador, sobre assuntos diferentes. É muito discutível, para não dizer errado, falar de direitos humanos como constituindo um processo contínuo e gradual, que se arrasta desde tempos imemoriais até aos nossos dias. Não, eles não existiram sempre nem foram gradualmente abrangendo mais pessoas. Eles são uma construção político-jurídica que emergiu num contexto histórico preciso. A ideia de que existe um cardápio de direitos individuais e invioláveis que existe acima e paralelamente ao direito dos estados é muito recente, teve a sua primeira confirmação formal em 1948 e demorou algumas décadas a ser constituída como argumento de mobilização política fundamental, apesar do termo ter sido usado anteriormente em diferentes contextos[1]. 


Antes disso houve muitas outras coisas: direitos de cidadania, direitos colectivos das minorias, uma história permanente de tensão para se definir a quem eram outorgadas garantias, pelo estado ou pelos estados, que andou constantemente para trás e para a frente, para decidir quem estava dentro e quem estava fora (como no caso dos escravos de Saint Domingue ou dos "indígenas" das várias colónias). 


Também a história posterior a 1948 mostra que os direitos humanos constituíram um permanente terreno de disputa para definir os seus limites e, ao contrário da conversa repetida, não foram uma invenção exclusivamente ocidental. Em 1948, eram precisamente os representantes ocidentais que abusavam do hoje chamado "relativismo cultural" para limitar o seu alcance. René Cassin, considerado justamente um dos fundadores da declaração universal dos direitos humanos, por exemplo, alertava para os perigos que a carta dos direitos humanos representava em contexto colonial, “pondo em risco a ordem pública” e “sujeitando povos diferentes a obrigações uniformes”. Por oposição, o papel de homens como Charles Malik, do Líbano, ou Carlos Rómulo, das Filipinas é hoje conhecido[2]. Também por cá, os direitos humanos não deixaram de ser instrumentalizados politicamente. Se eram mobilizados para atacar estados hostis como os socialistas ou os estados recém-independentes, eram também vistos com desconfiança por especialistas como Silva Cunha que viam na ordem do pós-guerra “uma descaracterização do direito colonial internacional”, isto é, uma estrutura jurídica internacional que replicava o elemento de diferença constante das estruturas imperiais[3]. Mais tarde, seriam alguns dos novos estados independentes a querer subordinar os direitos humanos (depois de os terem mobilizado intensamente na luta pela independência) a um direito primacial colectivo de auto-determinação, uma discussão longe de estar terminada acerca dos limites da soberania nacional. Tomando por exemplo o fenómeno global da descolonização, é bom registar que nem aqui se encontra um consenso entre historiadores acerca do seu contributo para a causa dos direitos humanos.

Por isso me parecem espúrios os exercícios de naturalização e essencialização de um espaço tão política e ideologicamente disputado como aquele relativo aos direitos humanos. Fica bem dizer que os direitos humanos são a mais importante invenção da civilização ocidental, imaginando-os a escorrer até à Antiguidade Clássica, ou que sempre existiram. É, sem dúvida, auto-congratulatório. Mas faz mais mal que bem ignorar a fragilidade e temporalidade daquilo que hoje damos por garantido e perene.

 

[1] O livro de Samuel Moyn, Human Rights and the Use of History é particularmente interessante a este respeito.

[2] Roland Burke, Decolonization and the Evolution of International Human Rights.

[3] Joaquim Silva Cunha, O Trabalho Indígena: Estudo de Direito Colonial

 

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