Sobre as alterações à lei da IVG, pelo João Gaspar
Sobre as alterações à lei da IVG (Lei nº 16/2007) já muita gente escreveu e estará quase tudo dito. Ainda assim, para memória futura, aqui fica a minha perspectiva do que se passou na Assembleia da República portuguesa aos 22 dias do mês de julho de 2015.
1. À boleia de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos - legítima mas indigna -, a maioria PSD+CDS/PP, ao arrepio dos mais elementares princípios de respeito pela democracia e pela liberdade, redigiu e votou cobardemente na última - última - sessão plenária da legislatura alterações a uma lei que:
a) funciona;
b) reduziu o número e aumentou a qualidade das interrupções voluntárias de gravidez.
c) reduziu drasticamente o número de mortes por complicações resultantes ou associadas ao aborto;
d) resolveu um problema social e de saúde pública;
e) tem uma legitimidade reforçada pelo sufrágio universal a que foi sujeita em referendo.
2. As alterações propostas e aprovadas:
a) violam liberdades e direitos humanos fundamentais - obrigar a ter uma consulta de acompanhamento é coagir e restringir o direito à "opção da mulher".
b) são contrárias ao código deontológico da ordem dos psicólogos - a lei obrigaria um psicólogo a fazer aconselhamento a alguém que o rejeita.
c) são contrárias ao código deontológico da ordem dos médicos - no limite, seria possível a um médico objetor de consciência realizar um aborto. Ora, ao contrário do que a maioria quer agora fazer crer, a objeção de consciência (sempre legítima, claro) só é válida se não tiver um carácter reservado e deve, como é óbvio, ser sempre comunicada ao doente. Um objetor de consciência só o é se o declarar publicamente.
d) provavelmente serão inconstitucionais, de hipotética regulamentação impossível, revogadas no início da próxima legislatura - logo, nunca entrarão em vigor.
3. A proposta destas alterações, sob uma capa de respeito pela vida, nasce daquilo que de mais obscuro e sujo pode existir num ser humano: a vingança e a mesquinhez cruel, a total ausência de respeito pela opção do outro (leia-se: da outra), o mais profundo desprezo pela liberdade individual.
4. Os deputados e deputadas eleitos pelo PSD e pelo CDS-PP na Assembleia da República portuguesa patrocinaram com o seu total apoio e voto (nem uma abstençãozinha para amostra, nem uma) esta mesquinhez vingativa sobre as mulheres, acrescidos de uma camada de cobardia política assinalável ao longo de todo o processo - é também contra isto que é urgente votar no próximo dia 4 de outubro.
Off-topic - um tremendo anacronismo:
nas galerias do parlamento não é permitido o uso de telemóvel, tablet ou pc. Para além do ridículo que é não poder acompanhar o guião das votações a que se está assistir a não ser que o tenhamos em papel (e neste dia o guião tinha quase 80 páginas), não é possível comentar ou debater online nada sobre a atividade legislativa se estivermos no parlamento. Ora, no debate online, se há coisa importante é precismente o tempo. Ou seja, assistimos ao debate ao vivo mas quando chegamos à internet já ele está morto. Ou moribundo, vá.