Elogio do filme «Hannah Arendt», de M. Von Trotta
Não sendo crítica de cinema, nem pretendendo aqui discutir o filme, não queria deixar de felicitar a primeira iniciativa da «Judaica» (Elena Piatok está de parabéns) e o sucesso que foi a exibição do filme Hannah Arendt, de Margaretha von Trotta, ontem no cinema S. Jorge, graças também à colaboração do Goethe Institut de Lisboa. Sucesso pelo enorme interesse que provocou, expresso na quantidade de espectadores que assistiram à sessão. Sucesso também, porque terminado o filme – e isso eu não esperava -, dava para perceber que ninguém tinha ficado indiferente a ele e que todos começaram logo a discuti-lo e debatê-lo. Mal acabou a sessão, era visível por todo o lado que ninguém se tinha remetido a uma atitude de neutralidade. Uns gostaram, incluo-me nestes, outro não, ou não tanto.
A questão da «banalidade do mal», relativamente a Eichmann, é certamente polémica e a própria Hannah Arendt colocou em causa esse conceito, quando depois considerou (e está no filme), que sendo o mal essencialmente radical não poderia ser ao mesmo tempo banal. Mas, independentemente da polémica, segundo penso, a questão da «banalidade do mal», do burocrata que não se sente responsável – foi pelo menos o que Eichmann disse em tribunal –pois era “apenas” uma peça da engrenagem burocrática que levou à Shoah, veio trazer, à época, em 1961, uma terrível e fundamental constatação: a de que os grandes crimes contra a humanidade não são obra de meia dúzia de facínoras ou de loucos, ou o que se queira chamar, mas sim de milhares e milhares seres humanos “vulgares”, acompanhados de milhões de cúmplices, num ambiente de total indiferença.
O segundo aspecto, que penso estar bem retratado no filme, é que a liberdade de pensar, a capacidade de julgamento, em tempos sombrios, em distinguir o bem do mal, sem se agarrar a ideologias, como se fossem uma bengala, é muito difícil, é um acto de profunda solidão, mas vitalmente necessário. Quando a mim, foi sempre essa a postura e a ousadia de Hannah Arendt, ao seguir o imperativo kantiano e ao colocar a questão de que o se espera de cada um de nós, mesmo se à nossa volta o “espírito do tempo” é contrário, é essa capacidade de distinguir entre o bem e o mal e agir em conformidade. E os poucos homens e mulheres que o fizeram, confrontaram-se com a mais terrível solidão.
Outro aspecto muito importante, que também está no filme, e que à época provocou um chorrilho de insultos contra Hannah Arendt, foi a crítica que ela fez aos conselhos judaicos, enquanto cúmplices do Holocausto. Arendt chegou mesmo a dizer que, se os judeus não estivessem tão bem organizados, o Holocausto teria sido muito mais caótico, mas menos “eficaz”. Claro que esta questão é muito complexa e não é passível de ser discutida num post, e por isso não o vou fazer aqui. Recordo porém que, como disse Primo Levi (Se Isto é um Homem), na Shoah, as zonas negra e branca são muito minoritárias e a zona cinzenta essa sim é maioritária, nela cabendo todo o tipo de cumplicidades – desde a colaboração directa à indirecta - com o crime. Primo Levi revela precisamente que, num crime da natureza do Holocausto, quase todos ficam contaminados, mesmo as próprias vítimas, e que, para que ele tivesse sido levado ao paroxismo, os nazis conseguiram montar todo um sistema de cumplicidades e colaboração. Claro que Primo Levi – tal como Hannah Arendt – distingue sempre entre estes os verdadeiros criminosos e assassinos, nesse caso os nazis, mas também os seus cúmplices directos, e aqueles que são colocados numa situação de «impossível escolha». Se uma lição há a tirar, hoje e sempre, é que não se deve permitir que esses criminosos acedam ao poder.