Pode a História servir para comparar?*
Há dias, concordei com Clara Ferreira Alves, quando disse (reproduzo de cor) que o actual ataque feito aos pensionistas pelo governo cheirava a «eugenismo». Dias depois, também concordei com Fernanda Câncio, quando, num artigo sobre o actual «sequestro da democracia», disse ser aconselhável resistir a «comparações idiotas, histéricas, demagógicas, caluniosas, odientas» e que não era «a gritar fascismo, nem nazismo» que se lutava contra a actual situação. Ora, parece-me que me estou a contradizer, ao concordar com as duas observações. Da mesma forma, parece que eu próprio teria caído em contradição, quando, há dias, no blogue «Jugular», tendo o cuidado de dizer que não considerava que estivéssemos a viver em regime de Ditadura, muito menos em situação totalitária, disse que, ao ouvir dizer que o governo poderia estar a criar uma situação de retroactividade relativamente às actuais reformas dos funcionários públicos, me lembrei do que aconteceu nos anos 30 do século XX.
Não sendo jurista, recorri ao conhecimento histórico, lembrando que, no pensamento jurídico do nazismo alemão, dois dos mais importantes elementos foram a incerteza do Direito, incluindo a retroactividade, e a utilização do «raciocínio analógico». Houve então quem considerasse que eu estaria a «banalizar o nazismo». Embora não aceitando a crítica, não deixo de ser sensível a ela, além do mais porque sempre me ergui contra comparações abusivas e enganadoras. Estas, além do mais, não só tendem de facto para banalizar determinados regimes do passado, como acabam por não servir para a analisar outros do presente, e por isso, para actuar sobre estes. Que fique desde já claro que considero o Holocausto (ou Shoah) algo de essencialmente singular e incomparável. Não se trata de uma questão de quantidade do crime, mas sim de uma qualidade diversa, nunca antes atingível. Não por acaso, quando os Aliados começaram a ter as primeiras informações dos massacres de judeus perpetrados a Leste ou de Auschwitz, não compreenderam o que se tratava, pois não havia qualquer referência anterior.
Mas lembro também Hannah Arendt, aliás tão glosada – e por vezes mal – no seu conceito de «banalidade do mal», que, ao reflectir sobre a capacidade de julgamento humano em tempos sombrios, considerou que se exigia a todo o ser humano que fosse capaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando não tivesse mais, para o guiar, que o seu próprio julgamento, ainda que este esteja em contradição com a opinião maioritária que o cerca. Na Europa dos anos trinta e quarenta, os raros homens capazes de distinguir o bem do mal apenas podiam contar com eles próprios e julgar, na solidão, cada caso novo com o qual se confrontavam, sem poderem recorrer à regra, inexistente quando não há precedente. Ora, o que pretendi, nesta nova situação incerta que estamos a viver de globalização, de governo sob tutela e de democracia sob sequestro, foi recordar o passado e alertar para os perigos - no caso da retroactividade e do que esta significa – de tomar certos caminhos.
Em que ficamos então? Podemos comparar situações do presente, processo sabertos ainda a decorrer, cujo destino ignoramos, com processos fechados do passado histórico, esse também passível de diversas interpretações? Sim e não. Não, porque a História nunca se repete, no sentido de uma determinada situação se apresentar exactamente da mesma forma em épocas diferentes, no presente ou no futuro como noutros tempos passados. Mas, sim, porque o conhecimento do que já aconteceu nos pode dar pistas para o julgamento do presente. Os acontecimentos estão sujeitos a várias determinações de contexto, em conjunções diversas de factores diferentes, além de a cronologia, com os seus contextos específicos, impedir a repetição. Cada momento ou acontecimento na História é singular e a História enquanto disciplina estuda precisamente as singularidades nos seus contextos específicos. Dito isto, é importante o conhecimento da História e a tentativa de esta apreender os eventos, distanciando-se e extraindo deles uma substância interpretativa e um sentido, aliás sempre perspectivados através do presente, ao qual não podemos deixar de escapar.
O conhecimento do passado e a escrita histórica não se limitam à análise distanciada do passado, mas contribuem também para a história em curso e «a história por fazer», ao possibilitar indirectamente aos contemporâneos entrar em contacto com os homens e as mulheres do passado e a cumprir dívida face a este das gerações presentes, fonte de ética da responsabilidade. Se eu conheço algo que se passou e as consequências que teve, posso e devo lembrá-las. Na certeza que tal não altera o presente, mas também na de que pode ajudar à compreensão deste, ao servir de referência, alertar e colocar de sobreaviso.
A História estuda as singularidades nos seus contextos específicos. Se o evento é único, ele pode ser guardado na memória e agir em função dessa lembrança, mas não pode ser utilizado como chave em nenhuma outra ocasião. Reciprocamente, retirar de um evento passado uma lição para o presente supõe um reconhecimento de traços comuns entre ambos. Dito isto, em História, a comparação tem um valor heurístico, pois é um ponto de apoio para melhor relevar as singularidades próprias a cada sistema. Por exemplo, apesar da singularidade do Holocausto, é útil compará-lo com outras situações essencialmente diferentes, pois que a comparação serve mais para «desbanalizar uma situação» do que banalizar uma realidade extrema e pode constituir o princípio de uma construção de um discurso alternativo da memória à qual as outras vítimas da história se poderão agarrar.
Sem minimizar Auschwitz, a memória desse campo de extermínio pode, apesar da sua singularidade, ser tomada como ponto de vista indissociavelmente cognitivo e ético sobre a História universal. O facto de a História não se repetir, impossibilita saber-se ou profetizar-se o que virá a acontecer no futuro, devido ao processo estar ainda aberto. No entanto, conhecer o que aconteceu no processo fechado do passado, através da revelação das suas matrizes, pode, mais do que indicar caminhos, revelar aqueles pelos quais não se deseja andar.
- Público,14/5/2013