Até agora, quando um(a) tipo(a) se casava, já sabia que no “e para o mal”, como em “para o bem e para o mal, na saúde e na doença”, estava implícita a cruel realidade de que nem o divórcio acabava com as sogras. Efectivamente, a afinidade não cessava pela dissolução do casamento, o que queria significar que, de divórcio em divórcio, as podíamos ir coleccionando. E às respectivas línguas.
Disse “não cessava” e, mesmo sabendo que é impossível alguém estar a ler um texto que ainda não terminei - muito menos publiquei, senti-vos tremer. A teoria do caos virou lei e o meu monitor abanou.
Pois é verdade, argutos e ora abandonados leitores, com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro aka "a que altera o regime jurídico do divórcio", acabou-se a papa-doce. Agora, recambiada a(o) noiva(o) para casa da mãe vai-se a sogra embora também (notem a rima à Quim Barreiros). Rectius, ressalvados os casos de viuvez, sogra passa a só haver uma: a actual e mais nenhuma. Digo “ressalvados os casos de viuvez” porque o legislador, ó negro humor, achou por bem que, em caso de dissolução do casamento por morte, o(a) viúvo(a) mantenha o direito à sogra, que é coisa que faz sempre jeito.
Feita a exposição, eis a arma do crime. Duas singelas e aparentemente inocentes palavras: “por morte”! A redacção do artigo 1585º do Código Civil, “A afinidade determina-se pelos mesmos graus e linhas que definem o parentesco e não cessa pela dissolução do casamento”, ostenta agora o crudelíssimo apendículo “por morte”, enfiado logo depois do “casamento”.
Lamento, meus caros, restam-vos os cromos e as caricas.
PS - Adoro a minha sogra (já escrevi, querida!, está bem assim?).
Cá recebi a vossa enésima alteração ao Código de Processo Civil. É com grato prazer que vos informo que neste momento trabalho com três versões do dito, uma para os processos de tal a tal, outra para os processos de não-sei-quantos a não-sei-quantos e outra para os processos que tramitam desde sei-lá-quando. Não leves a mal - antes de mais não leves a mal o facto de abruptamente te começar a tratar por tu, mas a verdade é que já nos conhecemos praticamente desde Adão e Eva, dizia eu, não leves a mal o que te digo de seguida, mas é de coração, e se um gajo não faz o que o coração manda o coração explode - e depois é uma porcaria que suja as paredes todas, dizia então, é de coração que te atiro: vai para o diabo que te carregue, que maus raios te partam, pára de cagar leis.
Do teu mandatário que neste momento renuncia ao mandato.
(uma adaptação excessivamente livre de uma farpa do Ramalho)
Nem que andasse de candeia acesa, deliberadamente à procura, conseguiria encontrar melhor sequência para o que aqui disse a propósito das prendas do legislador. O dramalhão que ontem ocorreu no Parlamento a propósito da votação do artigo 5º da lei-quadro das nacionalizações, com Afonso Candal (salvo erro) a esclarecer o que a versão original do artigo queria dizer, com Jorge Lacão a reescrever o artigo de forma que se pretendia mais clara e com o PS a recusar votar a proposta com o artigo reescrito, foi um belo exemplo de como se legisla neste pobre país. Em suma, uma norma é apresentada aos deputados para a votarem, a oposição e Manuel Alegre contestam a clareza da dita, um deputado esclarece que está clara que chegue, um secretário de Estado tenta levar a clarificação à letra da lei, o grupo parlamentar do PS recusa-se a votar a versão clarificada.
Tudo à frente das televisões, para o portuguesinho não perder pitada. Eu já não tinha grandes dúvidas de como algumas das lusas leis acabam no DR (e não é coisa só de agora), mas, tivesse havido um pouco de bom-senso, o que se exigia, e podíamos ter sido poupados ao triste espectáculo - o que vale é que o comum dos mortais não há-de ter percebido a gravidade do sucedido.
Por dever de ofício tive recentemente que me debruçar sobre o Código dos Contratos Públicos (CCP), que entrou em vigor em Julho passado. A coisa é um verdadeiro tratado sobre como não legislar, não me refiro à substância, mas à forma. Um texto difícil de trabalhar, cheio de remissões para remissões - remissões para artigos posteriores e artigos anteriores. Excepções a excepções e devaneios do género, que prometem dar cabo da cabeça aos infelizes que com o dito tiverem que trabalhar, tudo feito ao melhor estilo a jurisprudência que resolva. Mas a tudo isso o legislador, essa figura mítica que ninguém parece conhecer, já nos vem habituando - são as chamadas leis feitas a 50 mãos, sem fio condutor, sem eixo orientador.
Neste código, como se não fosse suficiente o emaranhado que atrás descrevo, somos ainda brindados com o artigo 228º, que passo a citar, chamando especial atenção para o brilhantismo do respectivo n.º 2, de que sublinho a parte interessante:
Artigo 228.º (Anonimato)
1 — No concurso de concepção, qualquer que seja a modalidade adoptada, a identidade dos concorrentes autores dos trabalhos de concepção apresentados só pode ser conhecida e revelada depois de elaborado o relatório final do concurso.
2 — A entidade adjudicante, o júri do concurso e os concorrentes devem praticar, ou abster -se de praticar, se for o caso, todos os actos necessários ao cumprimento do disposto no número anterior, nomeadamente no que respeita ao acesso aos documentos complementares referidos no n.º 3 do artigo 226.º.
Em suma, devem praticar ou abster-se de praticar todos os actos necessários à preservação do anonimato. Belo!