Música de Época - epílogo
E acabo como comecei, com barroco boliviano ou "música das missões", um Ascendit Deus in Jubilatione simples e despretensioso retirado daqui. E boa Páscoa.
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
E acabo como comecei, com barroco boliviano ou "música das missões", um Ascendit Deus in Jubilatione simples e despretensioso retirado daqui. E boa Páscoa.
Hoje, uma pequena variação. Não é exatamente uma peça sobre a Paixão, mas sobre as "lágrimas de Caravaggio", que dá precisamente nome à obra. A particularidade é que não se trata de uma composição do século XVII ou XVIII, mas sim de uma obra atual, composta por Jordi Savall (evidentemente inspirada na música barroca), o que me pareceu algo de extraordinário quando ouvi pela primeira vez. Escolhi o "libertas" por ser a minha preferida. O disco é este.
Depois de Haydn, Bach para a Sexta Feira Santa. Mais especificamente, A Paixão Segundo São João. Já tudo foi dito sobre o autor e o seu génio musical. Os contrastes e os paralelos com a música sacra católica são também interessantes, mas ficam para os entendidos. É uma obra solene e grave (não tanto como o S. Mateus), mas com aspetos surpreendentes. Deixo aqui o canto final, que transborda de uma emoção e ternura que eu, um relativo desconhecedor do austero luterano que foi Bach, não esperava. Descobri há tempos um texto que me confirmou o que empiricamente me pareceu logo nas primeiras audições: não me soa a um canto de luto ou de choro, mas sim a uma música... de embalar. "Descansa, corpo sagrado; que eu não chorarei mais; descansa, e eu ficarei também em paz". A versão é esta.
É tempo das grande obras e dos grandes autores, dos clássicos entre os clássicos. Para já, Haydn e As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz. Descobri esta obra fora de tempo: tive oportunidade de assistir a uma apresentação numa sala de espetáculos, não a aproveitei, e acabei por me arrepender amargamente (não foi, infelizmente, caso isolado). A segunda oportunidade foi algures no inverno de 2009-2010, na Biblioteca Nacional. Também deixei escapar. Até que, pouco depois, quedei-me na FNAC Chiado a ouvir, precisamente, esta peça nesta mesma versão (em DVD). Não foi, aliás, pequeno milagre, conseguir escutar o que quer que fosse num espaço daqueles, onde alguém parece esquecer-se de que a música clássica não pode competir, em amperagem, com o hip hop ou o heavy metal que martelam nas vizinhanças. Ou sou eu que sou de pancadas, ou duro de ouvido, ou outra coisa qualquer. Mas a partir desse dia tornei-me fã incondicional da obra em geral, e desta versão, de Jordi Savall, em particular. Eis a "Sonata II: Grave e Cantabile".
Já em plena Semana Santa, seria inevitável a presença do Stabat Mater, um hino medieval sobre a dor de Maria perante o filho crucificado. É uma peça (stabat mater dolorosa) inúmeras vezes glosada por uma enorme diversidade de compositores , desde o século XIV até à atualidade (a de Arvo Pärt é de 1985, e há mais recentes). A mais célebre é a de Pergolesi (de 1736), autor precoce, de existência breve - morreu com 26 anos - e que é conhecido, sobretudo, por esta peça, precisamente. Amanhã, quinta feira, será tocada no CCB. Deixo aqui o meu excerto favorito, "Eja Mater", retirado desta versão.
Ainda de volta das sonoridades medievais mas agora envolvendo especificamente a temática principal, a Semana Santa, a Paixão e Ressureição. Sendo o momento mais importante do calendário cristão - porque o que define a sua essência não é o nascimento de Cristo, mas a sua morte - é natural que esta seja a temática mais comum de toda a música sacra. E aqui introduzo mais uma heteredoxia: trago um excerto de uma peça do Carmina Burana (versão do Clemencic Consort, a minha preferida). Como é sabido, trata-se de uma compilação musical feita algures no século XIII, integrada na "tradição dos Goliardos" de composição satírica e profana; uma espécie de top of the pops da época, que inclui igualmente peças religiosas. Este excerto é um pedaço de um Ludus Passione (Auto da Paixão) com um lamento de Maria, "planctus ante nescia", muito comum por toda a Europa da época. O tom, porém, é fresco e ligeiro, sem a solenidade "litúrgica" de outras peças e sem a carga dramática típica de épocas posteriores. Descobri um livro interessante que dá informações muito úteis sobre este tema (Peter Dronke, Nine Medieval Latin Plays, Cambridge, 1994, capítulo IX, parcialmente acessível no googlebooks). É um monumento de singeleza e simplicidade. Ei-la, retirada deste disco, da Harmonia Mundi, uma vez mais.
Aqui fica mais uma de canto-gregoriano-sem-ser-bem-canto-gregoriano (que já vi que tenho que ser mais rigoroso no que escrevo a propósito). Desta feita, elegias fúnebres para reis e príncipes. O interesse desta peça provém do facto de ser de "canto moçárabe" hispânico, uma das tradições do dito cujo canto gregoriano que foi proibida pelo Papa Alexandre II em 1073. Uma vez mais, é pura harmonia vocal. A literatura sobre o tema está cheia de menções ao "modo frígio" e ao "modo dórico", o que para mim tem um interesse e uma relevância idênticos ao "understanding poetry" do Dr. J. Evans Pritchard. O disco é este. Andam por lá outras, uma das quais composta aquando da morte de Carlos Magno (814) e outra, de Guilherme, o Conquistador (1087).
Agora, o "canto gregoriano"; melhor, e pelo contrário, o que antecedeu o "canto gregoriano" e foi substituído por este. Eis o introitus da "missa de S. Marcelo" (ignoro qual seja exatamente o santo, porque há vários com este nome), uma liturgia pré-gregoriana, entre os séculos VII e XIII, típico do chamado "Antigo Canto Romano", de um tempo anterior ao Grande Cisma que definitivamente separou a Igreja de Roma ocidental da Igreja Ortodoxa grega. Aliás, este reportório está a meio caminho entre as duas tradições musicais, que vieram a cindir-se e a autonomizar-se completamente. Há, portanto, algo de remoto, de sobrevivente e de primordial nestes sons. Pelo que sei, era cantado na Basílica de S. Pedro, acompanhando a liturgia pontifícia. Para mim, que de liturgia e de técnica musical percebo pouco, existe sobretudo uma harmonia estranha, um sentido de profundidade paleocristã, uma solenidade imponente, contrastes muito interessantes e, sobretudo, graves. Oiço-os como se comem ostras (presumo): sem entender nem pensar bem no que é, saboreando e deixando apenas escorregar. O disco é este.
Começo com um exemplo paradigmático da minha mais recente paixão musical, o chamado "Bolivian Baroque", associado, em traços gerais, à música das missões jesuíticas da América do Sul e, em sentido mais estrito, à descoberta de um largo conjunto de manuscritos inéditos que permitiram um notável número de novas gravações e um interesse renovado pela temática. A música como instrumento de conversão sempre me interessou (bem mais do que as armas) e teve um momento alto aquando do visionamento de A Missão, de Roland Joffé, já lá vão mais de duas décadas. O filme contém muitos disparates mas a banda sonora de Ennio Morricone permite todas as absolvições. Por outro lado, a fusão musical é sempre uma experiência rica e interessante que me fascina especialmente. No caso presente, trata-se do exemplo mais antigo de polifonia vocal publicado no Novo Mundo (em 1631, mais informações aqui). Trata-se de um hino simples e singelo, dedicado à Virgem Maria e cantado em quechua. Destinava-se a ser executado no início das cerimónias, em procissão e é hoje um elemento importante do património cultural bolívio-peruano. Correm diversas versões no youtube. Escolhi esta, deste álbum. Bem-aventurança do Céu.
Época pascal, bem entendido. Na continuidade do balanço do que fiz aqui, decidi agora fazer uma breve incursão na chamada "música sacra" (ou litúrgica, ou o que quiserem), sem pretensões antológicas. É apenas uma seleção pessoal de peças muito especiais, num campo que não prima exatamente pela popularidade. Acresce o facto de este campo musical estar vulgarmente associado a convicções religiosas muito específicas, a "erudição" ou a outras formas de segregação que, de algum modo, afastam as pessoas da simples audição. Concedo que não é música fácil de trautear. Mas há barreiras que vale a pena derrubar e, sobretudo, acabar com ideias feitas, sendo a mais comum e errónea a de que "é toda igual". Sobre cada uma delas muito haveria a dizer, quanto mais não fosse pela heterodoxia de algumas. E como me pareceu que passeiam-se por aqui uns quantos melómanos, cá vai disto, de hoje até à Páscoa, em suaves prestações diárias.
Rogério da Costa Pereira
Rui Herbon
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
The times they are a-changin’. Como sempre …
De facto vivemos tempos curiosos, onde supostament...
De acordo, muito bem escrito.
Temos de perguntar porque as autocracias estão ...
aaaaaaaaaaaaAcho que para o bem ou para o mal o po...