Na véspera da morte de João Paulo II, numa conferência no convento de Santa Escolástica em Subiaco, o então cardeal Ratzinger endereçou aos secularistas uma proposta que considerou irrecusável. Essa proposta tem sido frequente e insistentemente reiterada por Bento XVI como sendo a única coisa racional a fazer para “salvar” a Europa: aceitar que tanto na esfera privada como na esfera pública (isto é, na discussão e promulgação das leis do Estado) , todos, católicos e não católicos, devem agir «veluti si Deus daretur» – como se Deus [o do catolicismo, claro] existisse.
A visita papal só teve como novidade a modificação do discurso de vitimização em relação aos casos de abuso sexual de crianças por membros da Igreja e o reconhecimento de que as tribulações por que passa a Igreja são causadas por «pecados» internos e não por inimigos externos. Todas as intervenções do Papa foram marcadas pela habitual rejeição de um mundo moderno que se recusa a aceitar as suas propostas e a viver «veluti si Deus daretur». Também habituais foram as constantes exortações de Bento XVI aos crentes para que resolvam esta «crise da verdade». Tudo somado, não me parece que, assente a espuma mediática dos dias, esta visita deixe marca.
Quando, em Setembro de 2006, Bento XVI visitou a Baviera e proferiu a famosa palestra de Ratisbona, afirmou que o Ocidente está ferido de morte, mais concretamente que «sofre de patologias mortais da religião e da razão» entre elas «um certo tipo de razão que exclui Deus da visão do homem». Hoje, no início de um encontro do papa com os bispos, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa explicou que entre as patologias nacionais também figura o ateísmo, a tal exclusão de Deus, problema grave só comparado aos «atropelos à vida e à instituição familiar». Estes últimos «atropelos» foram o prato forte da tarde de hoje em Fátima, com Bento XVI a criticar fortemente o aborto e casamento de pessoas do mesmo sexo, classificados como «alguns dos mais insidiosos e perigosos desafios que hoje se colocam ao bem comum».
O ateísmo, o maior drama da humanidade, explicou o cardeal patriarca na sua homilia natalícia em 2007, parece preocupar nos últimos anos as cúpulas eclesiásticas portuguesas, tanto que o outro cardeal português, Saraiva Martins, em Maio de 2008, presidiu em Fátima à «peregrinação contra o ateísmo na Europa». Por isso, não me espantei que Jorge Ortiga o tenha incluído no quadro de problemas nacionais do momento, bem mais grave que a crise que não lhe mereceu sequer uma referência.
Considerei no entanto curioso que o tema das conversas papais de hoje se debruçasse tanto sobre os pecados dos outros, algo sobre o qual estamos todos fartos de ouvir o Papa, sempre no mesmo tom. Em particular se pensarmos que apenas agora os crimes da Igreja mereceram a Bento XVI uma reflexão diferente das que nos habituámos ouvir das cúpulas do Vaticano ao longo da década que dura o escândalo do abuso sexual de menores que abala a Igreja. Todos os católicos que tenho lido se manifestaram muito agradados com o me(i)a culpa de Bento XVI. Todos eles também parecem considerar que o acto de contrição, pelos «pecados» dos padres abusadores não pelo encobrimento dos criminosos pela hierarquia da Igreja, é q.b. para colocar uma pedra em cima do assunto e que é um ataque à Igreja não o fazer. Talvez por isso, hoje, num assomo do que Anselmo Borges chamou recentemente hipocrisia moralista, os católicos presentes não tiveram pejos em aplaudir energicamente a condenação pelo seu Papa de comportamentos alheios que não lhes dizem, nem ao Papa, respeito.
Ou quiçá, seja uma confusão, pouco saudável no século XXI, entre crime e pecado que tenha propiciado as palavras do Papa e as palmas do seu rebanho. A esta confusão entre crime e pecado, querendo fazer passar por pecado o que é crime e por crime o que deveria ser apenas pecado (para os crentes nessas coisas), soma-se a confusão entre pena e penitência. É certo que as penas foram durante séculos as penitências ordenadas pela Igreja para a remissão dos pecados. Mas não faz sentido ouvir o mesmo Papa que tanto apelou ao amor cristão para esquecer e perdoar os crimes cometidos contra crianças de todo o mundo, o mesmo que reconheceu em relação aos crimes da Igreja que esta tem uma “profunda necessidade” de “aprender o perdão e a necessidade da justiça”, assumindo que a penitência releva estes crimes abomináveis, apelar a esse mesmo amor cristão para as meritórias lutas de ilegalizar ou criminalizar os «pecados» alheios.
As alocuções que Bento XVI fez aos fiéis em Fátima são isso mesmo: alocuções aos fiéis feitas num espaço na Igreja e sobre as quais eu, não crente, não me pronuncio em matérias que apenas à fé diz respeito. No entanto, eu, não crente, há já vários anos que sou leitora, muito crítica, de Joseph Ratzinger, de quem li praticamente toda a obra e de quem conheço bem o pensamento. Assim, o que registei destas homilias em Fátima foi o contraste, quasi contradição, entre o que ouvi e o que ao longo dos anos li da pena do Papa, o contraste entre fast food e uma refeição requintada.
E o que li de Ratzinger assenta nos dois pilares do seu pensamento que deram o mote à missa Pro Eligendo Romano Pontifici a que presidiu antes do conclave que o elegeu: os perigos da «ditadura do relativismo» e, não menos importantes, os perigos da fé católica infantil, «em estado de menoridade». Ambos, para Ratzinger, são as razões da crise que, reconhece, o catolicismo atravessa. E ambos, para o Papa, têm origem numa única causa: a recusa de não católicos e de muitos católicos em aceitar que a Igreja é a única detentora da verdade.
A sério, Alexandra, e sabendo que o que te deixa curiosa foi essencialmente o último parágrafo do primeiro post com este nome eu explico o que gostaria. Não me incomoda sobremaneira que Ratzinger deposite os males todos do mundo, inclusive a crise do cristianismo, no iluminismo ateu que fez do homem a medida de todas as coisas, deuses inclusive. Para Ratzinger, como sabes e como o demonstra, por exemplo, a célebre palestra de Regensburg ou Ratisbona, o iluminismo é a raiz de todos os males, porque veio com manias da razão independente da fé, de verdades fora das verdades da fé, da autonomia e da liberdade individual do Homem. O iluminismo, de que os ateus são os herdeiros, é uma «estrutura de pecado» que pretende, nihilisticamente, que o homem é «dono e senhor» não só de si como principalmente das leis que o regem. A pretensão «insensata» e «desumana» (segundo Ratzinger) do homem à liberdade entendida como autonomia, em vez de obediência à «lei moral natural» debitada pela Igreja, é culpa ateia e acabou na «ditadura do relativismo» que não reconhece deus como a fonte da lei. Ou seja, deixar o homem construir a própria lei (autos nomos) sem a Igreja é, para Ratzinger, o mal absoluto e a mãe de todas as crises.
No encontro do Papa com figuras da cultura no CCB, gostei de ouvir a primeira parte da defesa da construção de «uma cidadania mundial fundada sobre os direitos humanos e as responsabilidades dos cidadãos, independentemente da própria origem étnica e adesão política e respeitadora das crenças religiosas». Infelizmente a última parte, que pede o respeito pelas crenças religiosas, parece indicar que, como até agora, para a Santa Sé a defesa dos direitos humanos se restringe à defesa da religião e da mensagem religiosa, em detrimento de tudo o resto. Por isso, a Santa Sé não ratificou a Declaração Universal dos Direitos do Homem nem a maioria das muitas convenções e tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, muitas delas pelo «excessivo individualismo na forma de tratar tais direitos».
Na realidade devemos respeito aos indivíduos e não às crenças que professam. As crenças, como todas as ideias, não se discriminam mas as pessoas podem ser discriminadas em consequência de ideias. As ideias, todas as ideias, devem ser discutidas e contestadas. Aliás, a evolução extraordinária da Humanidade em termos de direitos humanos foi apenas possível porque foram contestadas e muito discutidas ideias arreigadas durante séculos que discriminavam pessoas em função da sua etnia, género, educação, posição social, etc. Todos deveríamos ter a máxima abertura perante todas as ideias, velhas ou novas, e o máximo rigor crítico na análise de todas elas.
Afirmar, como o Papa o fez aos nossos intelectuais, que «há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar no mundo», não indica, como alguns optimistas leram, que o Papa pretende abrir alguma janela para o mundo real ou repensar as ideias que tornam a hierarquia da Igreja completamente desfasada da sociedade. A conclusão da frase, «levando a sociedade a perceber que, proclamando a verdade, é um serviço que a Igreja presta à sociedade, abrindo horizontes novos de futuro, de grandeza e dignidade» indica que para Bento XVI é a sociedade que está errada e que a Igreja apenas precisa de aprender qual é a forma de mostrar ao Mundo que é a detentora da «verdade».
Juan Arias, o escritor e correspondente do El País no Vaticano que acompanhou João Paulo II nas suas viagens por todo o mundo, escreveu, há pouco mais de cinco anos, que «Ratzinger não pediria perdão à ciência pelas perseguições durante a Inquisição. Ele acha que é o mundo moderno que tem de pedir perdão à Igreja». Esta alocução indica que Bento XVI continua igual a Ratzinger mas se apercebeu da importância de uma boa campanha de marketing.
Hoje, em entrevista à Lusa, Francisco Sarsfield Cabral incorreu num erro que infelizmente é muito comum. Disse o comentador católico que "Julgo que o Papa explicou muito bem e muito sinteticamente o que entende por viver numa sociedade pluralista (...) em que o Estado é laico, mas de uma laicidade positiva, que não discrimina religiões, mas está atenta à sociedade e a sociedade não é laica, tem pessoas de várias religiões".
A adjectivação da laicidade tem marcado indelevelmente o léxico eclesiástico nos últimos tempos, numa tentativa de convencer os mais desatentos de que há uma laicidade má, normalmente designada por laicismo, e uma versão boa, a «laicidade inclusiva» ou a «laicidade positiva» a que se referiu Sarsfield Cabral. A conferência do cardeal-patriarca Policarpo «Laicidade e laicismo: Igreja, Estado e Sociedade», realizada em 10 de Outubro de 2007 no Centro Cultural de Belém, explica esta confusão. Para o patriarca de Lisboa, «um recto conceito de laicidade ressitua a dignidade e a transcendência da fé cristã» enquanto ao «alargamento abusivo do âmbito da laicidade costuma chamar-se laicismo», abuso que consiste em «uma mundividência laica, que fundamenta a moral, inspira as leis, regula o viver comum da sociedade».
Ouvi o primeiro discurso de Bento XVI em Portugal sem qualquer surpresa. O discurso, como previa, fez uma referência ao centenário da República em Portugal, sublinhando a importância da colaboração entre Igreja e Estado. Para um observador menos atento ao percurso do cardeal Ratzinger, esta referência poderia ser lida como uma renovação do espírito do Concílio Vaticano II no que respeita à separação Estado-Igreja, ou, mais concretamente, em relação à «autonomia das realidades temporais». Quem leu a primeira encíclica do Papa que reintegrou os bispos integristas da SSPX sabe que isso está muito longe da realidade. A Deus Caritas Est explicita na sua segunda parte o que tem sido o tema do seu papado, a recusa da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos.
Parece que subitamente o Estado português esqueceu a Constituição e a laicidade que consagra. Para além das extemporâneas tolerâncias de ponto decretadas pelo governo da República, a página do Ministério dos Negócios Estrangeiros designa a visita do chefe de Estado do Vaticano como «Visita Oficial e Apostólica de S.S. o Papa Bento XVI» e divulga, enquanto parte do programa oficial dessa visita, um conjunto de cerimónias religiosas («santa missa», «homilia», «oração» e «bênção»). Na página da Carris, somos surpreendidos com uma exortação aos visitantes a «vir saudar o Santo Padre nas ruas de Lisboa», «ornamentar as janelas e varandas para saudar o Santo Padre» e até a «vir colaborar na organização da Missa». Os autocarros da empresa participada pelo Estado e na dependência do Secretário de Estado dos Transportes, circulam com mensagens análogas e ostentando duas bandeiras do Vaticano. A televisão pública poderia passar nestes dias, aos olhos de um espectador menos informado, por um órgão de comunicação do episcopado ou do Vaticano.
Zé, este artigo é simplesmente fabuloso :) Gosto particularmente destes dois bocadinhos «Esta dupla intromissão - do Civil no Religioso e no nosso quotidiano - é inadmissível num Estado laico, que se secularizou há quase 100 anos; e que demonstra que pouco se aprendeu, neste último século, acerca da noção de laicidade do Estado e da consagração do direito à liberdade religiosa. » e, em particular, deste:
«A missa que hoje se celebra no Terreiro do Paço transporta-nos também inevitavelmente para outros tempos, onde a mesma Praça consagrava um regime com características assumidamente autoritárias, aclamando um brando ditador católico. Nesse tempo, o regime organizava-se de forma a produzir um espectáculo legitimador com sucesso garantido: decretava tolerância de ponto à função pública, manipulava as suas organizações para que - de forma peregrina - marcassem presença, e requisitava todos os meios de transporte disponíveis (de comboios especiais, a autocarros e barcos) de forma a garantir uma entusiasta presença maciça.»
Quando, há exactamente 10 anos, o carismático João Paulo II visitou Portugal, encontrou um país que tinha acabado de recusar a despenalização da interrupção voluntária da gravidez e onde o conceito de laicidade era ainda um conceito nebuloso, perdido num artigo 41º da Constituição a que poucos ousavam referir.
A evolução nesta última década da sociedade portuguesa alterou drasticamente a "Terra de Santa Maria", expressão com que Bento XVI se referiu recentemente a Portugal. Portugal é um país cada vez mais secular, com igrejas que a própria hieraquia reconheceu cada vez mais vazias, com uma lei de liberdade religiosa que estipula que “o Estado não adopta qualquer religião” e que “nos actos oficiais (…) será respeitado o princípio da não confessionalidade”. Nos últimos anos, Portugal legislou sobre uniões de facto, descriminalizou o aborto e acabou com o divórcio litigioso e, mais recentemente, o Parlamento aprovou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, cuja publicação aguarda apenas a promulgação por um presidente da República que parece não se ter apercebido da nova realidade social.