Por que não foram bombardeadas pelos Aliados as vias férreas para Auschwitz?
A SIC Notícias emitiu uma importante entrevista dada ao jornalista Henrique Cymerman, pelo Papa Francisco, onde questionado pelo entrevistador sobre o papel de Pio XII relativamente ao Holocausto, ou Shoah, este desvia a atenção – mal ou bem – para o papel dos Aliados durante a II Guerra Mundial, criticando o facto de estes não terem bombardeado as vias férreas conduzindo ao campo do extermínio de Auschwitz-Birkenau, não impedindo assim a continuação dos massacres e do extermínio nazi. Duas pessoas diferentes falaram-me dessa afirmação, elogiando o Papa por apresentar um argumento, sobre o qual que nunca tinham pensado. Ora, não se trata de uma questão nova, pois desde o final da guerra e a descoberta dos campos do extermínio nazis foi frequentemente colocada e discutida, nomeadamente no seio da historiografia sobre o Holocausto. Num livro editado no ano passado, Portugal, Salazar e o Holocausto, da autoria de Cláudia Ninhos e de eu própria, essa questão é abordada, pelo que publico alguns excertos sobre o tema.
A chamada «solução final do problema judaico»
Com o triunfo da posição da SS e da RSHA sobre as outras facções, através da conferência de Wannsee, de Janeiro de 1942, foi posta em marcha a «solução final», em Chelmno e Maidanek. Os motores diesel ali utilizados viriam a ser substituídos pelo Zyklon B, também usados nos outros campos da «operação Reinhardt» de Belzec, Sobibor, Treblinka e Auschwitz-Birkenau, erguido partir de Novembro de 1941 A partir de Wannsee e não mais viriam a ser tomadas decisões sobre matar ou não os judeus, mas, sim, sobre quando e por qual ordem estes deveriam ser assassinados. Dessa forma, não tendo sido o momento da decisão de levar a cabo o Holocausto, a conferência de Wannsee marcou o ponto da decisiva transição entre as deportações quase genocidas e um claro programa político oficial de extermínio.
O certo é que a 25 desse mês de Março, se iniciaram, em toda a Europa ocupada pela Alemanha, as operações genocidas e no Verão a terrível máquina de extermínio já estava plenamente em marcha. Na Polónia, os guetos foram dissolvidos e os seus ocupantes, tal como os judeus de França, Bélgica e da Holanda, começaram a ser deportados para os campos de extermínio. Nas semanas seguintes, cerca de 90.000 judeus, primeiro, homens jovens programados para o trabalho, e, depois, mulheres e crianças, foram enviados do Estado-fantoche da Croácia para guetos no distrito de Lublin e para os campos a Leste. Em 22 de Julho, iniciaram-se as deportações dos judeus de Varsóvia para Treblinka e, em 5 de Outubro, Himmler ordenou a deportação de todos os judeus dos territórios ocupados para Auschwitz. Com o início do funcionamento das câmaras de gás no campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em Junho de 1942, os nazis tinham passado à fase aberta do genocídio planificado e sistemático, cujo ponto culminante e derradeiro viria a ser o massacre de meio milhão de judeus húngaros, executados ao ritmo de 10.000 por dia, no Verão de 1944.
Em Dezembro de 1942, cerca de 75% das vítimas do Holocausto já tinham sido mortas e apenas nesse ano foram assassinados 2.700.000 judeus, mais do que em todos os outros anos de vigência do Terceiro Reich. O historiador Raul Hillberg observou o facto de os nazis terem assassinado cerca de 100.000 judeus, no período entre a tomada do poder e o fim de 1940, mas que, no ano seguinte, já tinham morto 1.100.000 judeus, em resultado da guetização, dos massacres periódicos na Polónia e dos assassinatos perpetrados pelos Einsatzgruppen e outras unidades alemãs a leste. Até Março de 1942, contudo, menos de 10% das vítimas do nacional-socialismo tinha morrido, ocorrendo os massacres, sobretudo de judeus e prisioneiros de guerra soviéticos, em Chelmno e na URSS. No entanto, no período entre o começo das mortes em Belzec, em meados de Março 1942, e meados de Fevereiro de 1943, mais de metade de todos os judeus e outras vítimas do nazismo já tinham sido mortos, podendo-se dizer assim que a conferência de Wannsee terá certamente tido um papel galvanizador relativamente aos crimes e aos seus perpetradores.