O "caso Paulo Pedroso" podia estar encerrado. Já deveria estar encerrado. Mas não está, e corre o risco de arrastar-se indefinidamente. O "erro grosseiro" do juíz Rui Teixeira seria corrigido, justiça seria feita, e os danos causados ao deputado seriam indemnizados. E passávamos adiante. Em vez disso, já se avizinham recursos da Procuradoria, e aquilo a que se chama "colocar uma pedra sobre o assunto" ficou, uma vez mais, adiada. Isto sou eu a divagar. Porque o estigma nunca o largará, por muitos que sejam os reconhecimentos do erro. Sobre Paulo Pedroso penderá sempre a suspeita velada, o "não há fumo sem fogo" e outras manifestações mais ou menos confessadas de desconfiança. Será assim tão difícil admitir de vez que foi erro? Teremos da nossa capacidade de discernimento e dos juízos de Rui Teixeira uma opinião tão próxima da omnisciência e da infalibilidade? Ou há aqui algo mais do que a fria e desapaixonada análise dos factos?
Acompanhei o "caso Casa Pia" sem grande empenho para além de um mediano interesse informativo, como qualquer mortal. Uma coisa me chocou particularmente: a forma emotiva como a questão foi tratada, uma autêntica paranóia colectiva que via, subitamente, pedófilos em todo o lado, nascidos como cogumelos onde quer que houvesse crianças. Manifestações "espontâneas" de populares em Lisboa, com gente a gritar "Rui Teixeira! Rui Teixeira", como se o antipático juiz fosse um justiceiro que iria lavar Portugal da vergonha da mácula subitamente revelada nas manchetes. E um sentimento de "caça às bruxas", não a bruxas quaisquer, mas aos poderosos, aqueles sempre impolutos e acima da Lei. Houve dias de autêntica sanha de adivinhar que outros "famosos" surgiriam envolvidos no caso, nas primeiras páginas do dia seguinte. Como se uma rede pedófila fosse um pequeno clube de políticos e figuras públicas. Se havia um lobby gay, porque não um lobby pedófilo, não é mesmo? Mais grave, porém, foi a campanha de desinformação que amplificou, estendeu e alargou os preconceitos e ideias feitas sobre a questão, misturando pedofilia, abuso sexual de crianças, desvios à norma e... homossexualidade masculina. Não raras vezes ouvi comentários, mistos de ignorância, medo e revolta, sobre o assunto. Um homossexual como um pedófilo em potência ou, pior, um homossexual como um pedófilo preferencial. Um pedófilo como um homossexual realizado e satisfeito, em suma. Enormidades destas, sim, mais ou menos sussurradas ou ditas abertamente, e contra as quais não havia argumentos dissuasores eficazes. No que toca a Paulo Pedroso, lembro-me de me ter causado forte impressão, não exactamente os meandros do processo, mas o circo promovido pelo marshall Rui Teixeira de que todos estamos recordados. E algo muito pior, muito mais desagradável e, sob certo ponto de vista, assustador: Paulo Pedroso era o alvo ideal da frustração de um país assustado, do medo e da ignorância. Um político em ascensão, ex-ministro, deputado. Tinha tudo contra ele: uma figura de gabinete, pouco brilhante no discurso, voz desagradável, ar antipático, óculos. E percebi que possuía uma característica que suscitava uma desconfiança adicional e irracional: uma cara redonda, imberbe. Ouvi eu de várias pessoas, sim: "tem cara de pedófilo, pá". Quando pedia uma definição mais concreta sobre o que era exactamente uma "cara de pedófilo", ouvia respostas variadas mas convergentes: que não era "normal", que parecia "o Padre Frederico", que tinha "cara de bebé chorão", ou, mais prosaicamente, que "não sei bem, mas vê-se logo, pá, sabes bem o que quero dizer, não me lixes". Era "esquisito", em suma. E o "ser esquisito" dava-lhe passaporte automático para a culpa de envolvimento em abusos de crianças e jovens da Casa Pia. Lembro-me de ter divagado, entre o espanto e o incómodo, sobre estas formas de justiça ad-hoc que julgavam as pessoas pela cara, de forma tão taxativa e concludente. Pensei no que aconteceria se o Paulo Pedroso tivesse cara de Paulo Pires, voz de Cândido Mota, carisma de Mário Soares. Certamente que não suscitaria uma vaga tão unânime de certeza da sua culpa. Hoje, posso estar errado, posso estar a ser injusto, posso estar a ser, eu próprio, preconceituoso acerca dos meus concidadãos. Mas não me convenci de que os murmúrios e os desabafos de suspeita, de desconfiança, de incerteza, que na blogosfera pairam sobre este caso e esta figura, não têm nada a ver com isto.
...aflorou ontem no meu rosto ao ver, na SIC-Notícias, o embaraço de Pezarat Correia perante a insistência de Mário Crespo em pedir um comentário às eleições em Angola e ao facto de o governo angolano ter proibido a entrada de jornalistas da SIC (e, de um modo geral, de todos os órgãos do grupo Impresa) para a cobertura das eleições, como represália pelo episódio do convite a Bob Geldof, que classificou a elite dirigente angolana como "um bando de criminosos". O jornalista, em tom de saborosa bonomia, relembrou que havia muita gente em Angola a assistir, naquele momento. De seguida, e para ver se conseguia desemburrar o gaguejante general, sacou (um "acto de guerrilha", como ele próprio o classificou) do seu passaporte e mostrou para as câmaras o visto que lhe foi concedido em 1986 para uma entrevista ao já então Presidente José Eduardo dos Santos e que, à última hora, foi anulado. Uma no cravo e outra na ferradura, dizendo que não concorda com essas proibições mas que as declarações do músico foram excessivas, o velho general na reforma engoliu em seco quando o interlocutor o confrontou com o facto de a imprensa portuguesa metralhar incessantemente o presidente Bush mas ser impensável que qualquer jornalista seja impedido de lá entrar em Novembro, e acabou por se sair com um "mas acha que Angola é os Estados Unidos, ou Portugal?". De facto, quando não se tem (ou não se quer proferir) respostas, fazem-se perguntas.
(Publicado originalmente no Caminhos da Memória) Todos os povos têm os seus heróis, os seus mitos fundadores, o seu imaginário fabuloso, o seu cimento identitário. Porém, a massa deste é formada não só por aquilo que une, mas também por aquilo que tenta o efeito contrário. Todos os povos têm inimigos. Não exactamente os inimigos reais, que podem variar consoante as épocas e as conjunturas, mas aqueles que são percepcionados desta forma, os que estão entranhados no fundo da alma de cada povo e sedimentados no imaginário colectivo ao longo de muitas gerações. Historicamente, os inimigos são sempre os nossos vizinhos, os que nos disputam os recursos, os que ameaçam a nossa integridade ou nos tolhem os movimentos. A pior sorte esteve sempre reservada aos pequenos povos que vivem em zonas de disputa de grandes potências hegemónicas e rivais. Os Balcãs e o Cáucaso, mosaicos de povos, línguas e religiões, teimam em recordar-nos este facto. Os polacos têm o supremo azar de estar entre alemães (prussianos, melhor dizendo) e russos. Os persas não morrem de amores por turcos e árabes. Os coreanos têm a poderosa China e o aguerrido Japão sempre à espreita.
Os portugueses, encurralados numa ponta da Europa, também temem desde sempre os seus vizinhos. Os castelhanos, não os “espanhóis”, porque Espanha é uma entidade política relativamente recente e artificial. Uma relação de amor-ódio, de atracção e repulsa com muito de inveja à mistura. Se a existência de Portugal implica a quebra da unidade peninsular, também é verdade que essa unidade teve que ser construída do centro para as periferias, de Castela-Leão para as outras regiões. Foi o que aconteceu, um movimento centrípeto, um vórtex iniciado nos século XIII, com a união das duas coroas, e reforçado, de forma irreversível, a partir dos finais do século XV. Portugal ficou de fora. Porém, a atracção era difícil de resistir. A nobreza portuguesa sempre sentiu uma enorme inveja pela sua congénere castelhana, pela riqueza das principais casas, pela extensão dos seus domínios, pela opulência das suas rendas. Até a Coroa portuguesa da Casa de Avis, a mesma que emergira em 1385 na luta contra Castela, não resistiu a uma aproximação dinástica gradual mas inexorável, que a curto prazo resultaria inevitavelmente numa união peninsular, como veio a ocorrer em 1580. Passadas algumas décadas, a história foi reescrita. Inventou-se uma “Restauração” para legitimar um golpe de estado e uma nova dinastia. E para a posteridade ficou a memória, também ela sedimentada ao longo de gerações, de um “período filipino”, de um “domínio espanhol”, de uma “perda da independência”, de uma “usurpação” e de outros epítetos bem menos simpáticos para designar o período em que Portugal, Castela e Aragão partilharam um rei comum, uma monarquia que era, à data, a mais poderosa da Europa e que dirigia o primeiro império à escala planetária, “onde o Sol nunca se punha”. Essa memória de usurpação e de “período negro” subsiste até hoje, nos manuais escolares, nas obras de divulgação, no senso comum. Os Filipes são os únicos reis de Portugal que não têm direito ao tratamento de “Dom”. E, geralmente, são até nomeados pelo título da Coroa de Castela e não de Portugal, ou seja, “Filipe II, III e IV” em vez de “D. Filipe I, II e III”. São reis estrangeiros, para todos os efeitos. Esquecido na penumbra fica o facto de as mais sérias e intencionais tentativas de união entre Portugal e Castela não terem partido de lá, mas de cá. D. João II, o príncipe perfeito, o nosso monarca iluminado do Renascimento, que fez correr muita tinta há pouco mais de uma década, em odes laudatórias à sua sageza, ao seu conhecimento premonitório sobre viagens atlânticas e Projectos das Índias, sonhava na verdade unir Portugal a Castela. E por pouco que não o conseguiu, não fosse o cavalo do príncipe D. Afonso ter baqueado no dia 13 de Julho de 1491, causando-lhe a morte. Já estava casado com a filha dos Reis Católicos e pronto para unir as três grandes coroas peninsulares. Igual sorte funesta teve, poucos anos mais tarde, o infante D. Miguel, filho de D. Manuel I e também ele jurado herdeiro em Portugal, Castela e Aragão. O desejo de unir as três coroas era de tal maneira intenso que foi baptizado D. Miguel da Paz, como forma de celebração de uma nova era de união e de paz ibérica. Estranha obsessão esta, a de um reino sobre o qual se afirma tantas vezes que estava de costas voltadas para Castela e virado para o mar e para as empresas ultramarinas. A longo prazo, o que persistiu na memória colectiva foi apenas o resultado final, o clímax desse longo processo de aproximação desejada. E assim, de uma forma perfeitamente acidental, pois não era suposto que o jovem D. Sebastião desaparecesse em África e deixasse o reino sem herdeiro, as seis décadas de União Ibérica passaram a uma espécie de Dark Ages do imaginário nacional, sinónimo de decadência, de opressão, de guerra, de perseguições, de submissão a um poder estrangeiro, em contraste com a luz da Golden Age dos Descobrimentos que a precedera. Submissão a um rei estrangeiro, mas não um rei qualquer: o rei de Castela, o rei vizinho. Até o nosso feriado nacional foi criado em tons carregados, sombrios, teatrais, trágicos. Camões foi, de facto, um herói da propaganda republicana, que conheceu o seu auge nas celebrações do 3º Centenário da sua morte. O Dia de Portugal não é uma data de celebração de uma batalha, de um tratado, da morte de um mártir da causa nacional. Não é Aljubarrota, o Tratado de Zamora, um qualquer Tiradentes. Não é sequer a data da “Restauração”. É a data da morte de um poeta que cantou glórias e heróis passados, numa era luminosa que morreu com ele, em tom premonitório e de mau augúrio. Lembro-me, algures por volta de 1970, de uma colecção de cromos sobre a vida de Camões que terminava precisamente com um epitáfio deste tipo: “a 10 de Junho, já as tropas do Duque de Alba entravam em território português, apagou-se a chama do Poeta e, com ele, a independência nacional”. O “período filipino” é o luto dos Descobrimentos, a ressaca da pimenta e da canela, o purgatório do ego nacional, que veio, todavia, a ressuscitar após 60 anos de incubação e de amadurecimento. A aversão aos espanhóis atravessou séculos. “De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”, diz o ditado. Durante os séculos XVII e XVIII, Portugal pendeu, primeiro, para os vizinhos-nas-costas-dos-vizinhos, ou seja, a França, e depois para a velha aliada britânica, numa clara opção atlântica. As aventuras de Napoleão e os delírios de Manuel de Godoy agravaram a crispação. Só em 1861 é que surgiram por cá as primeiras teses iberistas, mal-aceites de um modo geral e pronta e publicamente contestadas por uma “Comissão Central 1º de Dezembro”. Este núcleo de feroz oposição às ideias que preconizavam a aproximação e, eventualmente, a união com Espanha veio posteriormente a dar origem à Sociedade História da Independência de Portugal, instituição que ainda existe e que conta entre os seus objectivos a “promoção do culto do amor pela pátria” e “a preservação da dignidade de Portugal como nação livre e independente”. Nem a sintonia entre Salazar e Franco fez abrandar a tonalidade sombria, céptica, carregada, das percepções e impressões acerca do país vizinho, herança de séculos de desconfiança sedimentada. Espanha era o país da guerra civil, a terra de pesetas fracas perante o orgulhoso escudo forte, de prostitutas, de caramelos e de bárbaras touradas de morte, onde havia terrorismo e atentados a ministros, uma terra sem os nossos brandos costumes, sem a nossa tradição civilizadora enraizada em África e na Ásia, sem a nossa vocação atlântica, multicultural e multirracial. Espanha pariu conquistadores sanguinários que destruíram civilizações inteiras, com um passado feito de convulsões internas e de envolvimento em guerras europeias. Portugal, pelo contrário, concebeu navegadores pacíficos que descobriram o mundo, com uma história marcada por feitos heróicos de amor à Pátria, em perfeita sintonia com o facto de possuir a mais velha fronteira da Europa. Uma Europa turbulenta e longínqua. Lembro-me de uma caricatura germanófila da 2ª Guerra, onde uma URSS aflita espera a ajuda do Tio Sam. Um lusito barra o caminho e diz, orgulhoso: “isto aqui é Portugal!”. A sua História apenas regista um período negro, do qual veio, porém, a renascer fortalecido e revigorado: precisamente, o do domínio espanhol. Subitamente, Portugal vê-se parceiro da Espanha numa comunidade europeia, num processo que avança para uma união aduaneira e monetária. A união política está na calha. Vivemos numa época em que se discute uma Constituição Europeia e, posteriormente, um Tratado de Lisboa, que mais não são do que trilhos para uma futura Federação da Europa, alargada até às portas da Rússia e do Médio Oriente. Mas o que por cá suscita debate mais aceso não são os efeitos duráveis destes passos. São as simpatias iberistas de Saramago e a forma desabrida como as expõe. Ninguém parece preocupado em denunciar o risco de invasão por húngaros ou lituanos ou por a locomotiva da Europa estar longe, para lá dos Alpes. Mas sentimos a inundação de produtos, de peixe, de fruta, de empresas e de marcas espanholas. E paradoxalmente, olhamos para o quintal dos vizinhos e invejamos o seu “nível de vida”, os seus salários, os seus índices, a sua dinâmica e o seu think big. Muitos sussurram que não se importavam de ser espanhóis, num misto de inveja, desencanto e oportunismo. Ontem como hoje, a ambivalência prevalece. Curiosamente, o único verdadeiro ponto de ruptura formal entre Portugal e Espanha está hoje relegado à condição de mera curiosidade de baú, uma teima de uns quantos indefectíveis, um assunto de que ninguém fala e toda a gente ignora ou prefere ignorar. Olivença é uma vila alentejana que foi ocupada pelas tropas espanholas há mais de dois séculos e nunca devolvida. O seu estatuto permanece num limbo que Portugal aceita na prática mas não reconhece de jure, numa Europa em vias de federalização, num mundo globalizado, numa era que alguns dizem ser de “fim da História”. Os esconjuros do passado bem que podiam começar por aqui. Não seria muito, mas sempre era um começo. 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... ou a bandeira portuguesa hasteada hoje em Varsóvia estava mesmo virada ao contrário, ou seja, com o escudo invertido? Foi o que vislumbrei, por breves instantes, no meio de uma reportagem televisiva. Era montagem? Seria a bandeira içada numa cerimónia oficial, ou algum maduro polaco que quis fazer uma gracinha? Ninguém viu, ninguém deu por isso? Presidente da República, jornalistas, corpo diplomático, nada, ninguém? Só têm olhinhos para a joaninha da Biedronka? Bom, se fosse eu a mandar, já se sabia o que iria acontecer: quando o Kaczyński cá viesse, era certinho que seria recebido com a bandeira indonésia.
Por antecipação, regressei ontem a casa após uns dias de pausa, evitando os previsíveis congestionamentos de trânsito que se adivinham para hoje. Há anos que não me calhava na rifa esta viagem Algarve-Lisboa em fim do mês de Agosto. Depois da experiência, fiquei com pouca vontade de repeti-la. Há um não-sei-quê de arrepio na viagem de regresso de férias. Por acaso, sei bem o quê: os automobilistas portugueses, que habitualmente conduzem como imbecis, comportam-se como loucos assassinos nestas ocasiões. Ou como energúmenos ressabiados. Ou, ainda, como VIPs a caminho da sua finest hour. Sem ironias: não sei como é que só morreram umas dezenas de pessoas na estrada, nesta quadra estival. Não fosse um qualquer deus luso que no Olimpo vai metendo a mão por baixo, e teríamos que fazer uma qualquer conta "ao quadrado".
As situações são variadas, mas posso condensá-las em três tipos principais: 1. o velho ressabiado: é aquele que circula a 90 ou a 100 e que só acelera quando está a ser ultrapassado, sobretudo se for numa subida e o "outro" vier carregado ou não possuir um bólide; muitas vezes, após infrutífera resistência à ultrapassagem, toma-se de calores, borra-se todo para nos fazer o mesmo e depois abranda; mensagem: "toma lá e aguenta, cabrão". 2. o raticida: é aquele que considera o automobilista seu vizinho um rato e que se acha, portanto, no direito e no dever de montar armadilhas, como seja fazer ultrapassagens seguidas de desvios bruscos para a direita, deixando-nos a poucos metros da sua traseira e obrigando-nos a travagens involuntárias, ou circular pela faixa da esquerda em ultrapassagem lentíssima, propositada, como fito de nos manter atrás daquele camião pesado; mensagem: "toma lá e vai-te foder, cabrão". 3. o meteorito: é aquele que esmifra a fundo todo o HP da sua viatura, não olhando a consumos, estado do pavimento, tráfego, condições atmosféricas ou respeito pelos outros, pequenos pormenores de gente tacanha e atrasada; portanto, circula na faixa da esquerda a 160 kms/h, de médios acesos e sinais de luz constantes, encostando-se à nossa traseira em ameaça velada; muitas vezes efectua a sua manobra preferida, o ziguezague, sem, evidentemente, o uso de pisca, esse instrumento para atrasados mentais; mensagem: "toma lá e sai-me da frente, cabrão". Há momentos em que desejo ardentemente ser polícia. Sinceramente. Sempre me acalmaria a sensação de impotência de ver tanta irresponsabilidade tantas vezes repetida. Talvez fosse melhor, de facto, desejar ser deputado ou ministro para legislar convenientemente sobre estas matérias. Se bem que eu saiba que não há lei que evite, não há polícia que chegue. Há, sim, aquela coisa chamada respeito e civismo, velhos chavões e lugares-comuns repetidos até à exaustão. Acredito que é na estrada que as pessoas revelam a sua natureza, ali, chapa com chapa, como gladiadores do Rollerball na arena, sem maneirismos ou etiquetas sociais, sorrisos e mesuras de circunstância. É ali que dissipam frustrações e fazem descargas do fel que se pensava derretido pelo sol algarvio. Creio firmemente que boa parte das pessoas gostava, no fundo, de ter os carros armados de bazucas para poder derrubar vitoriosamente, com um yeeees!, os inimigos, perdão, concidadãos. Ou então pára-choques para poder bater à vontade. E o que acho mais engraçado é que, quando estão fora das suas máquinas, são unânimes em considerar que as estradas portuguesas são um perigo. Por culpa dos outros, evidentemente.
Alguém me sabe dizer o que fazer a velhas cassetes VHS, já sem uso? A empresa municipal do concelho onde resido não tem destino para elas e aconselhou-me a "colocar tudo num saco e metê-las no contentor". Aguardam destino final há vários meses e não tardará muito, sigo mesmo o conselho. Também tenho CDs e DVDs inutilizados para deitar fora. Ninguém sabe o que lhes fazer. Há dias ouvi, no espaço da Quecus na Antena 1, dizerem que não podem ser reciclados e que o melhor é reutilizá-los, por exemplo, como bases para copos...
Uns diazinhos de praia no Algarve profundo. Talvez não seja exactamente profundo, mas é, certamente, o mais procurado: uma extensa faixa de areal, gasolina mais barata a poucos quilómetros e uma época do ano propícia, ainda antes da avalanche do típico mês da silly season. As praias têm algum interesse e alguma piada. A começar pela sua ordenação. Em conversa com um nadador-salvador, percebi que ali, para poente, é Vila Real, aqui é Castro Marim e ali, para nascente, é outra vez Vila Real. Curiosamente, descobri que ali, a norte, também é Vila Real, como demonstram os passeios, a 200 m da areia, que ostentam orgulhosamente a sigla “algarve – cidad ra” [sic]. A primeira ainda desculpei, dada a proximidade com Espanha. Já a segunda, que daria algo como “Real António”, ficou obscura. Se daqui a séculos forem encontradas peças destas, os arqueólogos terão matéria para acesa discussão. Hei-de verificar, num mapa administrativo, mais esta deliciosa peculiaridade da estrutura municipal portuguesa. O mar aqui é ora azul, ora verde. Azul nos dias pares, verde dos limos e das algas nos dias ímpares. Por vezes, azul de manhã e verde à tarde, ou vice-versa. Um verde lindo, clarinho ao perto, escurinho ao longe. As algas dividem-se, também elas, em duas categorias: umas que flutuam e que se assemelham a gigantescas escarretas e outras, mais discretas, que se limitam a enrolar-se nas nossas pernas, e que parecem mesmo alfaces frisadas cortadas em juliana. Dizem que é da poluição, do vento, do aquecimento global, não sei. Vaticino que, num futuro não muito longínquo, quando for impossível tomar banho por aqui, os Gonçalos Ribeiros Telles dirão que se trata de um excelente fertilizante agrícola natural para utilizar nas hortas, mas os projectos estruturantes em curso certamente que as utilizarão para dar cor aos campos de golfe. O areal é agradável e extenso. Ocasionalmente passam um jipes giros e modernaços a dizer “marinha” com uns senhores de uniforme (invariavelmente azul, e nunca, que eu tenha reparado, verde) a vigiar o povo. Julguei que andassem à caça de sacos de haxixe largados durante a noite, de contrabandistas prevaricadores ou de perigosos traficantes. Há dias desenganei-me, quando um deles abrandou e pregou uma descasca a um velhote que catava conquilhas, na maré baixa, com uma rede. Aparentemente, é proibido apanhá-las com aquilo. O agente da autoridade afastou-se, com a consciência tranquila pelo dever cumprido, e o velhote voltou às suas lides ilegais. Tudo normal, portanto. A minha consciência burguesa e anti-ecológica vociferou contra o acto que tinha acabado de presenciar. Eu quero que as conquilhas se conquilhem, mas é. Queria era que os agentes andassem munidos de armas automáticas e que disparassem à queima-roupa e sem aviso prévio contra a maior praga destas zonas, umas bípedes criaturas brancas armadas de caixas, uma de cada lado, e que poluem tudo com pregões estridentes repetidos de 2 em 2 minutos. Ainda por cima, e a bem das regras do mercado e da concorrência, são várias as pastelarias que aqui procuram o seu nicho de mercado. Logo, é “óóóóóó boliiiiiiinha, há com creeeeeeeme e sem creeeeeeeme” em estéreo e surround. Anteontem, onde eu estava e a certa hora da tarde, cruzaram-se quatro. Uma sinfonia de miadeira desafinada. Não estou a brincar. Chegará o dia em que se reconhecerá que poluição não é só lixo nas praias. Agora até há tipos a vender camisas e artesanato africano na praia. Tardarão os mendigos, os vendedores de flores, as mulheres com crianças ao colo ou arrumadores de chapéus de sol? De resto, há cães na praia a passear-se alegremente por entre os nadadores-salvadores e pessoas de cana de pesca eriçada. E gente que usa o areal como se de um morgadio de família se tratasse, com quadrados demarcados na areia a simular campos de jogo. Tudo ilegal. Alguém se rala? Se não, porque é que o pobre velhote da pequena rede pagou as favas? Por aqui há sobretudo crianças e velhos, muitos. Netos e avós. Walking grandpas e grandmas, que percorrem, incansáveis, quilómetros de areal. Em Lisboa, provavelmente, não mexem o rabo e andam de carro para todo o lado. Mas aqui, não. Este Algarve está a tornar-se um poiso de reformados que trazem a 2ª geração de descendentes. Os filhos, esses, devem estar em casa a fazer contas ao spread. Ou então estou a ver tudo mal e largaram a prole com os velhadas e foram mas é para as Caraíbas à conta da Cofidis. Aqui também há muitos bifes, sempre desejosos do sol a pino e em processo de transmutação alvo-vermelhusca. Bifas, também as há. No outro dia vi uma a besuntar-se. Ainda me passou pela cabeça dar uma de Zezé Camarinha, mas falta-me o bigode e o charme de macho latino e, além disso, duvido que ela apreciasse a proposta de lhe passar natas pelas costas, como parece ser apanágio de célebre escritor algarvio. As pessoas reparam muito em certos pormenores. Soube que uma conhecida minha ficou muito incomodada por ter descoberto alguém com um fato-de-banho igualzinho e ontem assisti a uma demonstração de idêntico desagrado. É curioso verificar como as pessoas se vestem segundo uma bitola quase única durante 11 meses, usando fatos e gravatas como se de uniforme obrigatório se tratasse, e depois, durante umas semanas, querem à força ser diferentes. Lá mais para nascente, há uns pobres pescadores que apanham magros quilos de peixe local. Demoram horas a conseguir desenvencilhar os bichos das redes e cada um deles não excede um palmo, entre pele e espinha. Mas parecem divertidos, sobretudo por serem motivo de curiosidade e, presumo, divertem-se à brava com as perguntas imbecis da gente urbana que não parece distinguir uma carapau de uma solha. A terra mais próxima é interessante. Até tem um casino e tudo. E muita gente nas ruas à noite. E carrinhos de choque e uma roda gigante. E lojas com tudo a, pelo menos, 40% de desconto. Há um “Restaurante Suiss” que apregoa cozinha tradicional portuguesa. Ontem descobri um cartaz a informar que um outro restaurante possui características especiais: lareira, nada de micro-ondas e, sobretudo, “family atmosphere”. Falta-me paciência para ir lá verificar, se bem que me fique a roer de curiosidade. Os estrangeiros acharão, certamente, very typical mais esta inovação da cozinha portuguesa, agora que parece definitivamente arredado o chicken piri-piri. Mas os douradinhos da Iglo com batatas fritas, esses, ninguém lhos tira.
P.S. – estas palavrinhas estão alinhavadas há 3 dias. Anteontem dirigi-me ao espaço internet disponibilizado pela autarquia, mas estava fechado, sem aviso nem explicação. Disseram-me que “de Inverno está aberto, agora não sei”. Ontem tive sorte ligeiramente melhor, mas ainda assim insuficiente. O espaço estava aberto, mas era obrigatória uma vestimenta que eu não possuía e a preguiça impediu-me de lá voltar. Hoje, veremos como estamos de sorte.
Há dois dias, na TVI, depois de mais uma bela interpretação desse grande hino que é o "sou português", ouvi o inefável Toy dizer algo como isto: "desde o Tratado de Tordesilhas que Portugal é, como Espanha, um dos maiores países do mundo". Confesso que na altura não percebi bem se ele se referia ao tamanho do país, do orgulho nacional, da alma lusa ou da selecção de futebol. Hoje, finalmente, fez-se luz: falava da raça portuguesa.
E de onde me veio a iluminação? De um post de Nuno Lobo sobre o 10 de Junho. Mais precisamente, sobre a célebre expressão relembrada por Cavaco Silva e as reacções (oh que espanto) do PCP e do BE, em nome da democracia. "Democracia que significa aqui, para o PCP e o BE, a promoção do multiculturalismo, a ideia de que todas as culturas são igualmente dignas de admiração, a promoção do relativismo preguiçoso e irresponsável que acaba em nada". Fiquei esclarecido: as diferentes culturas humanas não são portanto igualmente dignas de admiração. Há umas mais dignas do que outras, e a nossa é evidentemente a mais digna de ser admirada, pelos vistos, pelas restantes. Depois, explica: ainda bem que Cavaco falou do "dia da raça", entendida como "a celebração dos portugueses com raça" (ahh, isso quer dizer que há portugueses que não têm o tal pedigree), "dos portugueses capazes da grandeza própria dos grandes povos". Aqui, confesso, fiquei ligeiramente confuso. Então sempre há outros povos grandes? Um deslize multiculturalista, concluo. Mas está perdoado, pronto. No fim de contas, talvez fosse um pouco exagerado dizer assim de caras que os portugueses são o único grande povo do planeta.
E que portugueses puro-sangue serão esses? Os exemplos são, afinal, decepcionantes. Em primeiro lugar, o Infante D. Henrique e a sua famigerada Escola de Sagres. Compara-a com a NASA actual, mas nunca existiu. Triste balanço, portanto, opôr à agência espacial uma inexistência histórica. Aproveito para dizer ao ilustre blogger que o retrato do "homem do chapeirão" é, possivelmente, do seu irmão D. Duarte. E depois, o Poeta Camões. Ohh Camões, sempre Camões. E que mérito teve Camões, segundo Nuno Lobo? Vai buscar Montesquieu para concluir que escreveu uma epopeia que se assemelha à Odisseia e à Eneida, coisa que, bom, salta um bocado à vista sem ser preciso ir consultar o De l'esprit des lois. Pobre Luís, pára lá de dar voltas na tumba, o cavalheiro quase que te chamou de plagiador mas não foi por mal. Ah! ainda tem outro mérito: foi "um grande poeta, capaz de cantar as glórias de um grande povo". Ora, cada cultura tem os seus bardos e os seus poetas, que cantam as respectivas glórias. Camões é o nosso. Não entendo bem qual é o espanto.
A raça portuguesa não se esgotará, pensei, aqui. Porém, constatei, com grande mágoa, que o blogger acaba por frustrar as expectativas e por ceder às tentações multiculturalistas. E porquê? porque esperava que definisse e exemplificasse de modo profícuo a raça. Em vez disso, avança para "os grandes homens e as grandes mulheres da história humana", cujo exemplo deverá guiar as nossas crianças e jovens, contrariando, portanto, o PCP e o BE que "permanecem empenhados em continuar a nivelar as crianças portuguesas a um denominador comum, a fazer da educação dos portugueses uma aventura sem destino". E que personagens-guia serão esses? Decepção. Esperava Vasco da Gama, Eça de Queiroz ou a Padeira de Aljubarrota, saíram-me um grego, um alemão e uma albanesa. Não percebi o que terão os três a ver com a raça portuguesa que faz, afinal, o título do post. Conclusão, "o 10 de Junho poderia e deveria ser o dia da raça dos grandes homens e grandes mulheres da história humana".
No rescaldo, ficou-me uma dúvida: para que quererão e porque precisarão os homens e as mulheres da história humana, grandes ou menos grandes, da raça?
Vamos imaginar uma qualquer multinacional (veio-me à cabeça a Union Carbide) que tenha causado considerável dano a um país asiático ou africano. Vamos imaginar uma qualquer empresa portuguesa que também se tenha portado mal. Ou vamos imaginar uma ideologia, um indivíduo, uma arma, uma estirpe de vírus, um hábito de consumo, o que quiserem. Algo que tenha causado devastação. Um porta-voz espertalhaço poderia justificar o acto dizendo que Luís de Camões também diz, n'Os Lusíadas, que os reis de Portugal "as terras de África e de Ásia andaram devastando". Todos nós ouviríamos a explicação mal enjorcada e acharíamos um disparate.
Pois no 31 da Armada não é bem assim. Nuno Miguel Guedes mete paninhos quentes na língua destravada do Presidente da República, a propósito do "dia da Raça". Bastava dizer que "foi erro, pá, nunca se enganaram?". Nada disso. Pelo contrário. Não foi erro nenhum, foi apenas o uso do "sentido em que era usado no século XVI, significando gesta, povo, colectivo". Uma bela lição de patriotismo, afinal, e os cães (rafeiros, provavelmente) do Bloco de Esquerda deviam ladrar menos e ler mais Camões, que é o que lhes falta. No fundo, basta que qualquer expressão venha nos Lusíadas para poder ser usada. Eu sugiro então que, das próximas vezes que alguém vier falar da al-Qaeda, não mencione "terrorismo" mas sim "Maura lança" (imaginar Bush como D. Sebastião e "novo temor da Maura lança" enche-me o peito). Adiante. Tudo isto são divagações mais ou menos prosaicas. Gostava era que o ilustre blogger, uma vez que parece versado em epopeia camoniana (ao contrário dos analfabetos detractores do Chefe de Estado), nos ilumine com a informação devida acerca da fonte. Ou seja, que nos diga onde é que n'Os Lusíadas consta exactamente esse conceito de "Raça" (sim, com maiúscula) que tanta tinta tem feito correr. É que eu, na minha modesta ignorância, percebi que a edição que possuo deve estar truncada, certamente expurgada, por um qualquer censor comunista, dos maravilhosos conceitos patrióticos do Poeta. Na verdade, apenas encontrei uma referência, no Canto Décimo (100) que, se aplicada conforme as disposições do blogger, não será muito abonatória dos nautas lusos, nossos egrégios avós, ali cantados: "Olha as Arábias três, que tanta terra/ Tomam, todas da gente vaga e baça,/ Donde vêm os cavalos pera a guerra,/ Ligeiros e feroces, de alta raça". Aguardo, portanto, esclarecimentos. É que o blogger diz que "a raça (...) neste contexto somos nós" e eu, apesar de pouco dado a tiques de sangue azul, não fico lá muito satisfeito por ser comparado a um cavalo árabe, ainda que ligeiro e feroz. Talvez para quem se considere um jumento seja um elogio, mas eu ainda vou mantendo algum amor-próprio.
Hoje, eram quase 9 da manhã, dirigi-me a um posto de combustível para cumprir mais um episódio da minha missão de poluidor- consumidor- utente- contribuinte e, sobretudo, pagador. Na Galp estava uma bicha (ups, fila, fila) enorme. Na BP, um pouco adiante, estavam duas viaturas. É natural, os preços são um pouco mais elevados e o combustível está pela hora da morte. Já só havia gasóleo numa das bombas. O carro da frente atestou o depósito, até transbordar. A camioneta atestou e encheu três bidões da caixa. Saí do carro e olhei para os que estavam atrás de mim: jerrycans e bidões nas malas.
As notícias da rádio matinal estavam a surtir efeito. As gentes, temendo a secura suprema, precipitaram-se para as bombas. Não era abastecer para assegurar a circulação por uns dias. Nem era sequer atestar. Era tudo isso e ainda encher mais uns recipientes. Na minha terra, chama-se a isto "açambarcar". Que curioso, o gasóleo, antes caríssimo, ficou subitamente uma barateza. Quando eu disse que "só" queria 40 litros, conta certa e habitual, o empregado fez uma cara estranha. À sua frente estava um pelintra armado em carapau ou um lunático, de certeza. Se ele conhecesse a Alexandra, decerto diria que "era da idade". Lá me abasteceu e perguntou se podia fazer a "conta certa ao euro". Atrás de mim, a fila aumentava, tal como a minha vontade de perguntar directamente para que é que queriam aquilo. Ainda pensei que houvesse algum novo produto bancário vantajoso que convidasse à acumulação de combustível. Não, toca a andar. Tive, ao menos, o prazer de um resmungo cúmplice com o aflito funcionário, que esperava um feriado tranquilo. Já se desenganara e preparava-se para "ligar a um colega para o vir ajudar". "Vai tudo para casa encher a banheira de gasóleo, ao que vejo, hein?", foi o meu comentário final. Depois ouvi as notícias sobre algumas carências nos hipermercados, o problema especial do leite e a questão dos frescos. Afinal os camiões do Pingo Doce mereceram escolta policial. No noticiário da SIC, uma jornalista simpática, perspicaz e inteligente pergunta num piquete (se não me engano, no Carregado): "foram vocês que apedrejaram os camiões?". Não, claro que não, as pedras levantaram-se da calçada e dirigiram-se espontaneamente para as viaturas que iam a passar, mas que pergunta. O nosso PM explica e diz que está em negociações para minimizar os efeitos. Recebe apupos e assobios em Viana. Uma festa, este 10 de Junho. O Portugal solidário, o Portugal do Euro, o Portugal vestido de verde-rubro que se abraça e beija quando a selecção marca golo, o Portugal da "raça", na feliz expressão nostálgica em boa hora relembrada pelo Chefe de Estado em dia de celebração nacional, esse Portugal deu lugar, por umas horas, ao velho Portugal que apedreja camiões e que açambarca combustível, mesmo que isso seja irracional, desnecessário e estúpido, mesmo que cada litrada que se guarda no cofre faça falta ao vizinho. Problema dele e cada um sabe de si, não é? Hoje combustível, amanhã arroz, depois de amanhã, sei lá, talvez latas de Bom Petisco. Eu vou já despejar a minha garrafeira e encher as garrafas de gasóleo, que vinho não puxa carroça, e o depósito de água que tenho para ali, vou atestá-lo do precioso líquido para quando for preciso. Se não houver água para o banho, paciência. E se não precisar dele, bom, vendo-o a alguém daqui a uns tempos, nessa altura já dará um bom lucro. No fim do episódio matinal, suspirei. Estava a exagerar, certamente. Afinal, amanhã, antes das 5, já estará tudo resolvido. Ou não?