Eu nunca tinha lido o texto que segue do Saramago. Hoje, ao almoço, o meu pai perguntou-me: - já leste esta coisa maravilhosa? E deu-me a ler a carta do Saramago à sua avó. Acabei-a num soluço.
O meu pai, por acaso, nasceu em 1922, em Grijó de Vale Benfeito, uma aldeia, então, perdida em Trás-os-Montes, tão distante, tão rural. A minha avó tinha 16 anos quando o meu pai nasceu e o meu avô 19, gente dada à longevidade, pelo que tive a sorte de ter avós paternos até bastante tarde, coisa que pareceria impossível, dada a idade avançada do meu pai, quando comparada com a idade dos pais dos meus colegas de escola. Isto para dizer que esta carta do Saramago diz-me muito, sei exactamente de que tipo de mulher está a falar, sei daquela ruralidade, sei daquela ligação à terra que Saramago não esqueceu, ouvi da boca dos meus avós, para além do que me transmitiu o meu pai, tanto do que me faz sentido nesta carta. Eis um texto magnífico e nele a possibilidade da intimidade entre o leitor e o escritor. Hoje, o meu dia teve sentido por causa do momento de génio e de autenticidade que se passo a trancrever:
A verdade é que esta é uma capa perfeitamente escusada. Por dois motivos: é feia que dói (nos olhos, nos ouvidos, nos sentidos todos) e é um aproveitamento barato da morte de Saramago. Para além de ser um ataque escusado à Santa Madre Igreja (eu sei, eu sei, mas têm-me dado umas cenas muito esquisitas para ler). Falando sério, quando se ataca uma religião que se ataque em modos — motivos não faltam — e com classe, agora colocar Cristo entre mamas e tatuagens naquela cama horrível com o título do livro de Saramago à cabeceira é que não. OK, confesso, estou-me assim um bocadinho nas tintas para o que possam sentir os crentes ao ver aquilo — aliás, quem estiver de bem com a religião em causa nem sequer olhará duas vezes para capa —, o que realmente me repugna é ver a memória de Saramago ser pontapeada desta maneira. Aquilo não é uma homenagem, aquilo reduz-se a somar mamas com religião para vender mais qualquer coisinha — cheira-me, no entanto, que lhes vai sair o tiro pela culatra. Lembro-me da reacção de Saramago quando acabou de ver o Blindness do Meirelles. Como ficou comovido e como levou logo um beijo do realizador na careca. Se ele visse isto, estou certo que não gostaria e que responderia à tentativa de beijo na careca com um belo dum murro nas trombas. Depois da novela das cinzas, que tem uma culpada insuspeita, depois dos aproveitamentos políticos todos, mais esta. Deixem o homem em paz, pode ser? Se o querem mesmo homenagear, leiam-no. É assim que se homenageiam escritores.
Só mais uma palavra em relação à liberdade de expressão e a quem acha que tudo pode ser dito, tudo pode ser feito, ou aqui d'el rei que isso é censura. Liberdade é precisamente o contrário disso que pensam: é não fazer tudo, não dizer tudo só porque se pode. O exercício da liberdade devia começar por uma espécie de auto-censura. Assim não sendo, não é verdadeira liberdade, porque fica tolhida logo a montante e sai desembestada em relação a quem se atravesse. Isso é mais libertinagem.
Já o homem está em cinzas e não há maneira de o deixarem em paz.
Alguns de boa fé (poucos), outros na ânsia de arrebanharem mais um adepto ou um voto, a verdade é que se tem misturado vezes demais o nome de Saramago com o de Cavaco Silva, a propósito da ausência deste no funeral daquele. Vejam se entendem: Saramago já tinha assumido que jamais estaria presente em qualquer evento onde estivesse o actual PR, que não tinha interesse em conhecê-lo e que não o cumprimentaria em circunstância alguma (ou algo parecido).
Estou-me nas tintas para as férias nos Açores ou lá para que raio de desculpa inventou Cavaco – seja o que seja, esteve ao seu nível, a desculpa, estou certo. O que verdadeiramente me interessa é que o PR teve a decência e lucidez de não comparecer, de colocar a vontade de Saramago à frente dos seus interesses e dos empenhos dos que entendem que ser PR é ir aos funerais de quem nos odeia ou despreza (e ainda que outras razões tenham sido, que é o mais certo, o que me interessa é o resultado final). Mas qual representação do país? O país esteve representado por quem verdadeiramente o representa. E, nestas coisas, isso não resulta de uma simples eleição. Um homem quando chega a presidente não se desmaterializa nem vai, por artes do divino, além do que é. Não se trata dele, portanto, nem do país, mas de Saramago, que não quereria tal figura no seu funeral. Assim, e independentemente das razões que a forçaram, eis uma boa decisão, a de Cavaco, honrando Saramago com a sua ausência e permitindo-lhe um funeral segundo a sua vontade. Façam o mesmo e deixem o morto em paz, que já vai sendo tempo, pode ser?
PS - Li, de raspão, o sociólogo Alberto, na Sábado, a dizer, como quem exibe uma medalha, que nunca conseguiu ler Saramago (de resto, julgo que não é a primeira vez que aflora este tema, o de não ler Saramago). Seja, homem, não o leu, leve lá a bicicleta. Agora veja se pára de escrever sobre ele.
No El Pais e no Público é analisada a reacção do Vaticano à morte de Saramago, «un ataque denigratorio, una condena de un tono casi sarcástico, que suena casi a celebración por la muerte de uno de los intelectuales que más lúcidamente ha condenado los abusos cometidos en nombre de la religión». De facto, como comenta o Ricardo no Esquerda Republicana, Saramago (e Richard Dawkins) foi dos primeiros a perceber as reais implicações do que aconteceu no dia 11 de Setembro de 2001. O excerto que se segue foi retirado de um artigo do escritor publicado também no Público e no El Pais - e na Folha de São Paulo onde se pode encontrar o artigo na íntegra -, uns escassos dias depois dos atentados levados a cabo por fundamentalistas islâmicos em solo americano.
Em finais de 2009, Saramago lançou mais uma polémica acesa, ou antes, outro livro blasfemo. Há pouco mais de 6 meses, muitos que agora tecem rasgadas elegias ao único escritor em língua portuguesa nobelizado, desdobravam-se em ataques viperinos sortidos ao autor de Caim (e friso o autor e não a obra, passível, como todas as obras, de todas as críticas). Os argumentos contra Saramago foram na mesma ordem, quiçá mais virulentos ainda, que os reproduzidos neste vídeo, em que se vê Sousa Lara num debate na Assembleia da República em Abril de 1992. O subsecretário de Estado de Cavaco Silva explicou que cortou o romance de José Saramago Evangelho segundo Jesus Cristo da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu, porque o autor não representava Portugal já que «atacou princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses. Longe de os unir, dividiu-os».
Escrever é ir além do que se é; só quem o conhece pode destrinçar o ser que acorda e dorme. Não é o meu caso. Nunca vi Saramago e nunca ansiei por isso. Saramago era para mim um livro que se lê. Tão-só. E tão só o fiz quando o fiz. Cresci – de crescer (os anos não são para aqui chamados) – a lê-lo, ao Saramago-livro. Li o Memorial como quem vive uma vida. Saí dele diferente, como quem – por causa – se decide numa encruzilhada. Ele há disto? Que coisa é esta que me deforma & forma desta maneira intrusiva? Na altura, a anos-luz deste presente circunstancial, senti Saramago um escultor, moldando sentires na pedra bruta do meu ser. As palavras do Memorial têm cheiro e sabor e olhos. Ouvem e palpam. Lá estão e cá hão-de ficar para sempre, como parte de mim e de quem de mim veio e há-de vir.
Todos os Nomes. Ainda hoje aquele sou eu. Saramago tem o dom de nos transformar e de nos transformar também. De nos transformar porque não saímos diferentes da discussão, e de nos transformar também porque nos obriga ao protagonismo. Ordena-nos, como que sob ameaça, o papel principal. E lá andei (e ando) entre registos de nascimento e de morte. À procura.
Ensaio sobre a Cegueira. Ceguei primeiro (naquele semáforo) e fui o fingidor depois; Homem Duplicado, procurei; O Ano da Morte de Ricardo Reis, entrei vezes sem conta naquele quarto de hotel.
Não se traduz este sentir em palavras (tento): a minha angústia de hoje, a minha dor, resume-se (?) ao facto de não mais haver mais daquilo (disto), como que a extinção de uma espécie. Acabou-se o chilreio obrigatório e maçador e divertido e saltitante e definitivo (imaginem a vossa vida sem pardais). Da certeza da certeza (da minha) de que para o ano não sairá mais um – ainda que eu o venha a detestar (como aconteceu com Caim).
Caim. Com Caim, que eu (ainda abaixo da esperança média de vida, o que me retira autoridade) julguei escusado, senti (assim que o li) que Saramago dizia algo como "estou quase aí e continuo a não acreditar em ti, essa luz que até já vi [quatro pontos em forma dele, disse ele em entrevista] não pode ser, que eu sei que estou deitado naquela cama e que dali me levam metade para aqui e a outra metade para acolá. Às cinzas."
Assim o quero. Quem manda aqui sou eu. Assim como fiz Blimunda e Baltasar, Jesus a amar Madalena, ceguei o primeiro que cegou. Assim vos dou, eufemismo de marco-vos a ferros. Como vosso pai.
Com Saramago, o homem, foram-se hoje as esperanças de mais intrusões destas. A partir d’agora tenho a certeza de que as páginas não me comandam.
Foi só isto que se perdeu hoje. Este.
Doravante, ler será infinitamente mais cómodo. E aborrecido.
Uma última palavra (e detesto terminar assim) para os que crucificam Saramago ou o enforcam numa figueira, conforme o queiram cristo ou judas: o Saramago que ontem morreu, o dos livros, não tem direita ou esquerda. Foi sempre em frente. Leiam e odeiem ou amem. Ou então calem-se, que daqui não levam votos nem pedidos de mais hóstias ao padeiro.
Saramago corrige Mário Crespo: não tem 87, mas 86 anos.
Crespo desculpa-se, dizendo que fez as contas por alto.
Carreira das Neves, após elogiar Saramago como escritor, começa por dizer que não gostou de ler, a páginas 82 de Caim, Deus tratado por filho da p...* (p... quer dizer puta).
Saramago responde dizendo que se excedeu, que não era necessário. Parece arrependido.
Siga.
O bailinho bíblico de Carreira das Neves a Saramago, com aquele desparabolizar da Bíblia, atinge contornos ... bíblicos - o crente explica ao não-crente que aquilo tem um contexto histórico e que não pode ser tomado à letra.
Saramago diz que Deus (deus) é mau, ou não teria (Deus/deus?) escolhido Caim.
Carreira das Neves ensina a Saramago que a coisa tem que ser contextualizada, que a letra não é a substância (sem aspas).
A páginas poucas do final, o telemóvel de Carreira das Neves toca. Não é a macarena, mas é parecido. Carreira das Neves desculpa-se. Crespo diz que não faz mal. O toque vai até o fim, com direito ao fio de béque da praxe.
A sensação que me ficou é que Saramago acredita mais em Deus do que Carreira das Neves, tal a indignação que revelou pelo comportamento do segundo (do do meio, Deus). Nem era preciso o abençoado telemóvel ter tocado, que a entrevista já ia divina q.b.. Saramago teme o Deus literal; Carreira das Neves não acredita nele - e o crente vira não-crente e vice-versa.
* "Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso (...)" [o bold literal é meu, o literário é do Saramago]
PS - Que não haja confusões, não subscrevo (só se fosse um perfeito idiota e o Memorial do Convento não existisse. E o Todos os Nomes e o Ensaio sobre a Cegueira e o Ano da Morte de Ricardo Reis e a Jangada de Pedra e... e ...) as palavras do sociólogo Gonçalves, na última Sábado [«(...) qualquer versículo do Antigo Testamento, esse "manual de maus costumes", vale a obra inteira do pobre José, embora, no contexto, a pobreza seja só de espírito.»]. Basta o Memorial do Convento,cuja não leitura devia ser proibida (olhó fundamentalismo) para contrariar a sentença à la Saramago do aspirante.
5 - Saramago tem o direito de dizer que "a Bíblia é um manual de maus costumes" e até que é um livro impróprio para crianças [esta última parte aparece no Público como tendo sido dita, embora não surja entre aspas].
E eu tenho o direito de dizer que Saramago fez uma leitura superficial da Bíblia, o que fica bem demonstrado pela assertividade, à laia de revelação, da sentença, "Caim nunca existiu" - há alguém com dois dedos de testa que diga o contrário? (eu disse: com dois dedos de testa). Eu tenho o direito de achar uma tontaria aquela do "Sem a Bíblia seríamos outras pessoas - provavelmente melhores". Wishful thinking, no mínimo. Não fosse a Bíblia, seria outra coisa qualquer a tornar-nos maus. E cá estaria Saramago a escrever sobre uma inevitabilidade alternativa. O homem não é a Bíblia, a Bíblia é que é o homem - a não ser que acreditemos que o livro nos caiu dos céus aos trambolhões. Eu tenho ainda o direito de achar que uma leitura correcta da Bíblia pode ser um bom instrumento pedagógico - omitir a Bíblia, isso sim, é impróprio para crianças. Como, de resto, é impróprio omitir-lhes (às crianças) a existência do que quer que seja. Saramago acha Caim - o seu - divertidíssimo. Eu achei-o uma estopada, um tiro na água e uma oportunidade perdida para se parodiar o antigo testamento. E muito gostaria de ter achado o contrário, o que quereria dizer que tinha passado umas horas mais divertidas do que as que me foram proporcionadas. Já agora, divertidíssima (nalgumas partes) é a Bíblia. Por último, tenho o direito de continuar a gostar de Saramago, de o achar um escritor de excelência (mesmo Caim, longe dum Memorial, está bem escrito, o problema ali não é formal). Venha o próximo, que cá estarei para o ler, como fiz com este - ao contrário de muitos saramaguianos de primeira hora (mas de Sábado passado, quando lhes nasceu um deus).
PS - Já me esquecia, aquele david não-sei-das-quantas, o do Parlamento Europeu, parece querer instituir o direito de se poder pedir a alguém que renuncie à nacionalidade. Existisse tal direito de petição e, no que me toca, já teria destinatário. O autor do Memorial do Convento não me envergonha (como poderia?), pelo contrário. Envergonham-me, isso sim, os laras e os davides da vida.