tumor
Não olhes para mim assim. Tenta não ocupar o meu campo de visão com essa tua gaifona de bezerro acabado de parir. Reconhece que não é coisa assim tão complicada e que é tarefa ao teu alcance. Mesmo tu serás capaz de a cumprir a contento. Não, lamento, não te odeio. Nada que merecesse sequer a pena ser escrito. Não te coles à parede quando passo, nem me peças desculpa por a tua massa ocupar espaço. Em cada palavra, até nos bons dias. Evita, isso sim, olhar para mim. Continuemos a respirar o mesmo ar contaminado. A partilhar os mesmos cheiros fétidos. Os mesmos sabores acres. A visão das mesmas pessoas. As que eu suporto e as que tu detestas. Porque eu as suporto. Não digas nada. Não te atrevas a dizer nada. Está tudo dito. E desde que a tua mísera figura se interpôs entre o destino do meu olhar. Simplesmente estava tudo errado. Mexias-te de maneira inconveniente. Vestias-te de forma descortês. O que noutra pessoa ficaria bem, em ti é uma chapada nas trombas. Andas a querer provocar-me. Está-se mesmo a ver. Nasceste para isso. Qualquer dia, levanto-me cinco minutos mais cedo e mato-te. Assim eu arranje dia para ser estragado com rotinas quebradas, que não é meu costume matar. Arrancava-te a vida do corpo. E tu havias de ser condenado por teres aparecido morto dessa forma desacostumada. Mas isso dá trabalho, teria de perder alguns minutos a pensar na coisa. Se fossem dez, passariam a ser quinze os minutos que te dedicava. E tu, perdido, está-se mesmo a ver que acabavas por morrer feliz. Perceberias, no último estertor, que te dediquei quinze minutos do meu dia. Os teus melhores, que nos outros se querem de fama. E isso está completamente errado, meu pequeno tumor reverencial. Há que reflectir. Até lá, evita apenas olhar para mim. Fecha os olhos. Havemos de pensar em algo melhor.