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Um debate importante à esquerda

Decorre um debate importante à esquerda em torno de uma proposta que consta do relatório dos economistas pedido pelo PS, e que diz respeito ao complemento salarial público para trabalhadores com baixos rendimentos (o último take do debate é este, e contém links para os posts anteriores: https://www.facebook.com/GusmaoJose/posts/841981919203107).
O debate não gira em torno do desenho especifico da medida, mas do principio. E por principio, diz-se, o Estado não deve complementar o salário pago pelas empresas. Deixo para outra discussão o argumento já referido pelo João Galamba, que tem o seu quê de irónico: aparentemente, o único rendimento legítimo dos trabalhadores deve resultar de relações mercantis (que muitos consideram de “exploração”), não devendo em qualquer circunstância alguma ser complementado por uma prestação pública. Rendimentos de mercado, sim; rendimentos de mercado complementados com rendimentos de cidadania é que não - como se os benefícios obtidos pelos trabalhadores tivessem de corresponder exactamente aos sacrifícios feitos pelos empregadores.
De ponto de vista de uma “luta de classes” de soma nula, o raciocínio até pode fazer sentido. Porém, ele assenta numa falácia fundamental. É que o Estado JÁ complementa o salário pago pelas empresas através de várias formas e feitios. Fá-lo todos os dias, através da existência de um serviço nacional de saúde, que evita que o salário do trabalhador tenha de cobrir todas as despesas com estes cuidados; fá-lo através da existência de uma escola pública, que evita que o salário do trabalhador tenha que suportar a educação dos filhos; fá-lo através de um conjunto de prestações que ajudam a equilibrar os orçamentos familiares de quem trabalha. Se, por exemplo, as famílias tivessem de pagar todas as despesas de saúde e de educação do seu bolso, é certo que, para além de impostos mais baixos, reivindicariam salários mais altos; como muitos destes trabalhadores que auferem rendimentos do trabalho muito baixos já não pagam IRS (ou pagam valores muito baixos), essa compensação teria mesmo de ser feita (integralmente) via salários.
Assim, os serviços públicos e as prestações sociais pagas aos trabalhadores ou, numa expressão, o que é conhecido por “Estado social”, pode ser visto como um enorme mecanismo de “subsídios” aos salários - sendo que, do ponto de vista relativo, estes “subsídios” são tanto mais importantes para aqueles trabalhadores que auferem salários mais baixos.
[o mesmo se passa, já agora, a nível fiscal, com o principio que, em sede de IRS, isenta do pagamento de imposto aqueles que auferem rendimentos do trabalho inferior ao valor anual do salário mínimo, acrescido de 20% (artigo 70.º - “mínimo de existencia”). Segundo a lógica de que não devemos subsidiar os baixos salários, deveríamos obrigar estes trabalhadores a pagar IRS para, acto contínuo, pressionar os empregadores a pagar salários mais elevados.]
É, por isso, difícil aceitar que se possa ser a favor do Estado social (sobretudo na sua versão mais universalista) e ao mesmo tempo, e por princípio – repito: por princípio -, contra o facto de o Estado complementar o salário dos trabalhadores. Aqui, pelo menos, a direita é coerente: é contra todo o tipo de intervenção pública, ou pelo menos a favor da sua minimização.
Há um outro argumento contra esta proposta, mais empírico do que (estritamente) ideológico: uma medida como esta é um subsídio aos baixos salários, e esta estrutura de incentivos vai viciar a estrutura económica, prolongando o “bias” da economia portuguesa para multiplicar empregos mal pagos. Este é uma preocupação importante, e toda a esquerda deve levá-la a sério.
(noto o recurso à linguagem dos “incentivos”, que muitos à esquerda evitam sistematicamente por a considerarem de “direita”; quando se trata de calibrar politicas para trabalhadores ou para funcionários públicos e se tem em conta os incentivos que podem ser vistos como potencialmente perversos, isso é mimetizar a direita; quando se trata de aplicar o raciocínio aos “empresários preguiçosos”, a linguagem dos incentivos já pode ser de esquerda).
Infelizmente, ninguém tem solução para este problema - e muitos preferem não olhar para ele na sua dimensão mais ampla, que é esta: todas as economias, mesmo as mais avançadas e sofisticadas do mundo, têm empregos destes. Todas. O seu peso na estrutura produtiva pode variar, mas em nenhuma economia é de 0%. Portanto, quem tem ou terá responsabilidades governativas tem de saber o que fazer com estes empregos e com os trabalhadores que os ocupam.
Naturalmente, uma estratégia de esquerda deve assentar na inovação, na qualificação e na capacitação de trabalhadores e de empresas, de modo a que pessoas e organizações saibam aprender e progredir, e para que possam construir produtos e prestar serviços diferentes e cada vez mais sofisticados.
A economia portuguesa precisa deste upgrade como de pão para a boca, e isso exige uma estratégia ampla de politicas públicas de desenvolvimento. Mas o caminho é lento e longo; e não só achar que podemos acabar com estes empregos no curto prazo é uma fantasia, como – e o ponto é este - mesmo apostando na qualificação de trabalhadores e empresas, mesmo continuando a subir o salário mínimo, mesmo lutando contra a excessiva precariedade laboral, mesmo combatendo todas as práticas abusivas – e devemos apostar em tudo isto -, nenhuma estratégia económica conseguirá alguma vez eliminar totalmente os empregos que, sobretudo no setor dos serviços (em particular, os serviços as famílias, que tenderão, aliás, a crescer no futuro), têm um considerável grau de precariedade e/ou sazonalidade.
A “denúncia” não resolve grande coisa, sobretudo se não se existir um plano realista – repito: realista - para minorar o problema. E enquanto esse plano não chega (e estou disposto a subscrever um), podemos encontrar instrumentos de política pública eficazes que impeçam que pessoas que têm uma ligação regular ao mercado de trabalho (e essa é a grande diferença em relação ao RSI, que visa uma população em grande medida excluída do mercado de trabalho) não consigam sair de uma situação de pobreza monetária. Como é praticamente impossível fazê-lo via IRS ‘tradicional’ – porque estes trabalhadores não ganham o suficiente para pagar imposto -, é preciso criar um ‘imposto negativo’. É disto que trata um complemento salarial aos trabalhadores com baixos rendimentos – que deve ser bem desenhado para, claro, evitar abusos de todas as partes (e este não é um desafio pequeno).
O que é difícil aceitar é que a critica da proposta consiga ignorar por completo que ela representa um aumento – que pode ser considerável - no rendimento disponível de um conjunto grande de trabalhadores que, numa economia com 14% de desemprego, dificilmente terá aumentos salariais nos próximos anos.

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