já terás reparado que este post é sobre ti. Certo, o facto de o teu nome estar no título não torna a referência particularmente subtil. Ainda assim, vale a pena marcar que quando vês uma coisa sobre um 'Ricardo Araújo Pereira' automaticamente percebes que isso é sobre ti.
Isto para explicar que eu é 'paneleirices'. Sempre que oiço falar em paneleirices, acho que é sobre mim. Ou mesmo em 'mariconços'. Sabes porquê? Foi de ouvir tantas e tantas vezes palavras como estas, ao longo da vida toda - e, provavelmente ao contrário de ti, de as ter ouvido mesmo sempre, cada uma delas. É que prestei atenção - porque até soube sempre que eram sobre mim. Sim, ouvi as piadas diárias de pessoas que infelizmente não são humoristas, as piadas sistemáticas de pessoas que até são humoristas mas não particularmente inteligentes ou sensíveis ou empáticas ou capazes de compreender o mundo em que vivem - e não te estou a incluir nesta lista. E ouvi os risos mesmo sem piadas a serem ditas e, sim, vi todo o tipo de olhares e, claro, ouvi todo o tipo de insultos; ouvi mesmo bem todas as palavras que me diziam "não existas" ou "pelo menos, não digas que existas" ou "não perguntes, não digas". Aprendi bem que o insulto é comigo, foi nele que me construí. É tipo Luís XIV, o insulto sou eu.
A construção não terá sido fácil, mas mesmo assim foi bem mais fácil do que para muita gente; em vários casos, viver no insulto não deixa que lhe sobrevivamos. Mas eu tive, afinal, sorte; sou como tu: branco, homem, sem dificuldades económicas, com acesso a educação e com a possibilidade de desenvolver as capacidades que são mais valorizadas, num e dum país europeu - e também tive alguma sorte nas pessoas à minha volta. Com estas vantagens todas, consigo chegar a esta altura e falar à vontade de paneleirices e dizer a outras pessoas que 'paneleiro' é comigo. Mais: digo que é sempre comigo. Sim, as pessoas que usam a palavra nem sempre pensam no conteúdo. Mas eu penso sempre nele, porque aprendi - porque sei - que a palavra é sobre mim.
Bom, mas isto para dizer que não pude deixar de ler e ouvir a tua entrevista naquela publicação chamada i em que falas de uma pessoa cuja intervenção admiras mas que exagera e tal, numa história sobre gin e paneleirices. Claro que achei que era sobre mim, já te expliquei como a minha cabeça funciona. Mas o senhor do gin percebeu o que expliquei acima - e sentiu o peso de tantos casos que acabei por transmitir, não só por palavras. Não, é verdade que não tem muita piada - e é chato para quem faz carreira do humor, mas mesmo assim, tentando comparar, e valorizando o humor como valorizo, não acho mesmo que o teu trabalho acabe por ser mais difícil do que o meu.
Acho que tu e eu gostamos da liberdade de expressão. Mas acho que, por isso mesmo, concordarás comigo: a primeira liberdade de expressão é a da identidade. De cada vez que uma pessoa não sobrevive, mas também de cada vez que uma pessoa sobrevive controlando cada gesto ou cada palavra, de cada vez que uma pessoa é forçada a negar-se, é essa liberdade de expressão que está em causa. A primeira.
E conhecendo a dinâmica dos crimes de ódio como conheço, também conheço a sua ligação aos insultos. É também por isso que para mim é importante que os insultos sejam controlados, há liberdades fundamentais em causa. E que as pessoas percebam o impacto que esses insultos têm, para que possam controlá-los. E que humoristas façam humor inteligente usando os sistemas de poder que temos e invertendo-os, como tu já soubeste fazer tantas vezes.
E é por isso que a culpa do Trump não é do 'politicamente correto'. Ser politicamente correto é só perceber que a linguagem nos constrói e que temos o dever de a controlar, é perceber que devemos alterar o pensamento que vem dessa linguagem, é perceber que temos toda uma história para corrigir, politicamente. É perceber que o peso dessa história é hoje. A culpa do Trump é sobretudo do facto de não termos ainda conseguido interiorizar que temos que fazer isto tudo em conjunto. E por acaso não acho mesmo nada que o senhor do gin tenha ficado com vontade de votar no Trump.
Conheço-te há uns anos - e agradeço-te muitas coisas, entre as quais um sketch brilhante sobre aborto que ficará para a história da política por cá, um sketch brilhante sobre o vrnhieccc que foi fundamental para clarificar o que estava em causa no casamento entre pessoas do mesmo sexo (parece que era só uma palavra...) e muitas piadas inteligentes na apresentação dos Prémios Arco-Íris todos os anos. Sim, eu sei, algumas eram fáceis - o Pedro Arroja é tipo Trump - mas outras eram muito mais interessantes. E, sobretudo, lembro-me de não só rir contigo mas chorar contigo, quando partilhaste em público o motivo para estares ali todos os anos: porque também tu tiveste uma perda importante para a homofobia que aí anda e porque também tu já mostraste que sabes sentir o peso da coisa.
Ou seja, espero que este ano nos Prémios, supondo que a tua adesão se mantenha, haja boas piadas do Ricardo Araújo Pereira não sobre o Arroja ou sobre o Trump, mas sobre o Ricardo Araújo Pereira, mesmo. Tipo dizer que não deves dizer que és um 'mariquinhas a ir dar sangue' - até porque os maricas como eu não podiam dar sangue até este ano. Mas vou deixar o humor para ti, porque confio que sabes que o poder que tens traz responsabilidade - e que a nossa liberdade também a exige.
João Miguel Tavares discorre no Público de hoje sobre "sangue, gays e discriminação". Tenta dar um ar científico aos argumentos que apresenta, que diz que não podem ser refutados com "bandeirinhas arco-íris".
Vamos por partes:
- em Espanha não se coloca qualquer questão sobre sexo entre homens no questionário a dadores/as de sangue; não houve qualquer tipo de problema com a recolha de sangue no país vizinho; diz que não foi das bandeirinhas;
- a ideia de que há "grupos de risco" na transmissão do VIH já fez parte da "ciência" que, como sempre, é feita por pessoas, por vezes tão ou mais ignorantes sobre questões sociais como o João Miguel Tavares; entretanto, identificou-se que o que seria relevante seriam os "comportamentos de risco" e é com base nisso que se trabalha a prevenção, ainda que com o lastro pesado da anterior noção de "grupos";
- o João Miguel Tavares continua nos grupos, mas não é o único. O Presidente do IPST, Hélder Trindade, também continua. E pelos vistos o Ministro da Saúde também continua, uma vez que não houve qualquer tipo de tomada de posição que o distancie das afirmações de Trindade no Parlamento, o que só reforça a ideia de que o retrocesso nesta política foi uma orientação do Ministro e do Governo;
- está toda a gente a achar que os testes feitos ao sangue não são suficientes, o que põe em causa a crença na qualidade do sangue recolhido; para quem não perceba esta parte (que não exige ciência particular), as respostas às questões dadas são as respostas que se quiser dar. É evidente que muitos "homens que têm sexo com homens" e muitas outras pessoas já deram sangue sem responder com veracidade a alguma pergunta do questionário. E mais uma notícia: os questionários variam muito de acordo com os pontos de recolha, independentemente das orientações do IPST. Pobre sangue se a sua qualidade dependesse das respostas ao questionário.
- a pergunta "sendo homem, teve sexo com homens?" é ineficaz: o objetivo é triar o sexo anal (desprotegido) mas a pergunta não é incisiva e pressupõe que sexo entre homens envolve necessariamente sexo anal (o que é uma noção de sexo à Bill Clinton) e pressupõe ainda que não há sexo anal de homens com mulheres e de mulheres com mulheres (pronto, já estou a imaginar o João Miguel Tavares, com a sua teoria avançada da pilinha e do pipi, bem como o Hélder Trindade a ficarem confusos nesta parte).
- se se pretende minimizar os testes de sangue recolhido, reduzindo a recolha com base em questões que façam uma triagem, então convém que essas questões sejam incisivas para não eliminar quem não se quer eliminar e para eliminar quem se quer eliminar. Não, não são. Aparentemente é chocante para a moral vigente fazer uma pergunta sobre "sexo anal" mas não é chocante fazer uma pergunta a eliminar todos os gays;
- e agora as bandeirinhas: mesmo que fosse eficaz, resta saber se seria proporcional: uma questão discriminatória tem um efeito de estigmatização que tem um custo significativo; é obrigação do IPST garantir que ela é necessária e também garantir que não existem formulações alternativas que não sejam estigmatizantes e que atinjam o objetivo; uma vez mais, em Espanha, esse país longínquo, a questão não é colocada e não há problemas com a qualidade do sangue recolhido.
- o problema dos Joões Miguéis Tavares é acharem que não têm preconceitos e que a ciência não é feita por pessoas com preconceitos e pode ser discutida sem pensar em "filosofia, política, direitos de minorias ou sociologia". A mesma ciência que nos atirava para uma patologia mental no início dos anos 90, a mesma ciência que "estabeleceu" diferenças nos cérebros entre homens e mulheres para justificar o sexismo, a mesma ciência que foi à procura de (e encontrou, que encontra sempre quando procura com muita força) diferenças entre "raças".
- não existem "homens que têm sexo com homens", existem muitos "tipos" de "homens que têm sexo com homens" e sobretudo muitos comportamentos diferentes no "grupo"; não perceber isto é não perceber nada sobre discriminação, sobre gays e sobre sangue; mas isso não impede ninguém de decidir expressar o apoio à discriminação numa coluna de opinião de um diário generalista, que a banalidade do mal nunca precisa de expertise.
Sempre que se discute uma questão de discriminação, não existe simetria no debate. Quem apoia a discriminação pretende limitar os direitos – e deveres – de quem integra uma minoria alvo de discriminação; já quem defende a igualdade não pretende limitar os direitos de ninguém. Quem apoia a discriminação não hesita em classificar as pessoas que integram a minoria como menos do que pessoas; quem apoia a igualdade apoia Direitos Humanos que sejam efetivamente usufruídos por todas as pessoas.
Um debate sobre direitos de minorias que estão identificadas enquanto alvo de um preconceito e da discriminação associada não é, por isso, um debate como os outros. É um debate sobre a humanidade de quem pertence a essa minoria – e é, por isso, particularmente violento para quem a integra. Já participei em muitos debates em que do outro lado se dizia com suposta generosidade que até se achava que pessoas homossexuais deveriam poder existir – e não, não se discutia o direito de pessoas homossexuais a não serem fuziladas. Ou seja, promover qualquer debate sobre discriminação é permitir o insulto do lado de quem se opõe ao reconhecimento dos elementos de uma minoria enquanto pessoas. Promover esse debate a nível nacional, sem as elementares regras do debate parlamentar, é por isso dar carta branca ao discurso de ódio e a uma enorme e sistemática violência sobre as pessoas que integram uma minoria e que tiveram que se construir enquanto pessoas contra toda uma história de insulto.
Pior: promover que possa ser uma qualquer maioria a deter o poder de limitar os direitos de pessoas cujas identidades as remetem para a pertença a um grupo minoritário alvo de discriminação é, desde logo, promover à partida a ideia de que existe uma diferença ontológica que permite a uma qualquer maioria considerar a discriminação como válida. Ou seja, é legitimar o insulto, o bullying e a mesma discriminação que a Constituição proíbe.
É sobretudo por isso que, independentemente de maiorias em sondagens num sentido ou noutro, a proposta de referendo aprovada à força pela direção do PSD – porque de outra forma não haveria sequer maioria parlamentar para a aprovar – é e será uma página negra na história da igualdade e dos Direitos Humanos em Portugal. Muito para além das questões concretas que estão em jogo (e que são, de facto, fundamentais - mas para uma minoria apenas), hoje o que está em causa é mesmo um importante precedente para o futuro da nossa democracia e para a atitude de Portugal face aos Direitos Humanos.
É hoje noticiado no DN que o projeto de resolução apresentado por Hugo Soares para um referendo sobre a adoção por casais do mesmo sexo e sobre a coadoção em casais do mesmo sexo será discutido em plenário na AR em breve - e só após essa discussão e votação é que haverá finalmente a oportunidade para uma votação final global do projeto sobre coadoção.
O DN apresenta aliás as duas perguntas propostas na resolução, apresentando a iniciativa como se ela pudesse ser minimamente séria ou pudesse de alguma forma ser levada a sério. Não o é - e não pode.
1. A proposta não é séria porque, surgindo neste momento, o objetivo é (como de resto aponta a deputada Francisca Almeida, do PSD, na sua declaração de voto) apenas o de adiar a aprovação de uma lei que também quem redigiu esta proposta já sabe que tem que acontecer.
O facto de esta proposta ser apresentada agora, após a aprovação do projeto sobre coadoção na generalidade e após todo o trabalho de especialidade que se desenrolou durante vários meses, deveria ser suficiente para demonstrar que esta é uma mera manobra de diversão que revela uma enorme falta de respeito pelo processo parlamentar, pelas entidades envolvidas, pelas instituições europeias que se pronunciaram - e sobretudo pelas crianças e famílias que precisam de proteção legal. Hugo Soares julgou inicialmente que a AR poderia votar a matéria e julgou que faria sentido que a análise da matéria fosse feita na especialidade, exigindo portanto um aprofundamento técnico. No final do processo, não terá gostado do resultado de uma discussão aprofundada e prefere uma superficial? E afinal decide que não deveria ter votado o projeto porque a AR não era suficiente para o fazer?
2. O conteúdo da proposta é, ainda por cima, ilegal, como já foi frisado por várias/os deputadas/os. Abrange duas questões, quando só é permitida uma por lei. As questões são evidentemente diferentes, sendo que a coadoção diz respeito a famílias que já existem e à necessidade de assegurar a continuidade de laços afetivos já estabelecidos. Aliás, esta existe em mais países do que aqueles em que se permite a adoção por casais de sexo diferente. E foi em relação à coadoção em casais (e não à adoção por casais) que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos se pronunciou de forma inequívoca, como aliás o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa relembrou ao Parlamento.
3. Mais: é ilegal porque nem sequer existe um processo legislativo iniciado no âmbito do acesso à candidatura à adoção por casais do mesmo sexo, o que seria uma condição necessária para promover um referendo sobre a matéria. Isto porque a Assembleia da República recusou (e aparentemente julgou-se suficiente para recusar) projetos nesse sentido no mesmo dia em que aprovou a possibilidade de coadoção em casais do mesmo sexo. Hugo Soares chegou ao ponto de colocar a hipótese de apresentar um projeto sobre adoção por casais do mesmo sexo para tentar corrigir esta ilegalidade, embora não pretenda promover essa hipótese. "Completa ausência de seriedade" é uma expressão leve demais para caracterizar esta conduta.
4. Caso o conteúdo da proposta não fosse ilegal e incidisse apenas sobre a coadoção, o que se estaria a pretender referendar seria afinal a pertença ao Conselho da Europa, porque é neste momento uma obrigação de todos os países que pertencem ao Conselho da Europa garantir um igual acesso à coadoção em casais de sexo diferente ou do mesmo sexo. Uma vez mais, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já se pronunciou de forma inequívoca, numa decisão que espelha um consenso europeu. E o próprio Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa escreveu à Comissão competente para o relembrar. Aliás, esta posição torna evidente o extremismo e a violência subjacentes à recusa desta extensão da possibilidade de coadoção a todos os casais.
O que é sério nesta proposta é o facto de tornar evidente a falta de cultura democrática de quem a propõe, sobretudo porque propõe que uma maioria possa decidir direitos e deveres de uma minoria. É fundamental realçar que democracia não é de todo sinónimo de regra da maioria, muito pelo contrário. O recurso à regra da maioria é em si mesma um compromisso, porque a unanimidade - que seria, essa sim, a regra que em teoria melhor se adequaria a um processo democrático - tornaria impraticável chegar a decisões em tempo útil. Daí que, para que a regra da maioria seja um mal menor, haja proteções constitucionais de minorias. Ou seja, a ideia de uma votação por maioria sobre direitos de minorias não só não é democrático como é profundamente antidemocrático - e é, na realidade, uma ideia totalitária.
No Dia dos Direitos Humanos, vale a pena relembrar a história de violações desses direitos - e os contributos atuais para essa história de violações, que continua a escrever-se. Hugo Soares e quem o apoia está em muito má companhia.
E vale sobretudo a pena lembrar as famílias compostas por pessoas e por crianças que nasceram livres e iguais em dignidade e em direitos. São estas famílias e apenas estas que são afetadas atualmente por uma lei que não lhes reconhece direitos iguais - e igual dignidade. São estas famílias que são compostas por pessoas que a lei não reconhece ainda como pessoas. São estas famílias que urge proteger. O mínimo - mas mesmo o mínimo - que se exige é seriedade.
No programa 'Justiça Cega', e como vem sendo hábito, Marinho Pinto não pode estar a falar enquanto Bastonário da Ordem dos Advogados; na melhor das hipóteses, fala enquanto cidadão com dificuldades sérias de compreensão dos direitos mais fundamentais e da lei. Vale a pena clarificar:
1. Não há "coadoção por casais homossexuais", há coadoção EM casais homossexuais.
Estamos a falar de crianças que já existem e que já são criadas por casais do mesmo sexo; Marinho Pinto não consegue nem quer conseguir ver essas crianças, cujos direitos estão postos em causa por uma lei que só lhes permite o reconhecimento de uma figura parental (quando na realidade existem duas). Já em casais de sexo diferente, é possível a adoção por parte de cônjuge ou pessoa unida de facto de filhas/os do outro membro do casal para precisamente proteger as crianças criadas nessas famílias.
2. Sim, de acordo com o projeto aprovado, a coadoção aplica-se exclusivamente nos casos em que crianças têm apenas uma figura parental legalmente reconhecida.
Aliás, o caso mais frequente é o de crianças planeadas e criadas por casais de mulheres, casadas ou unidas de facto, que recorreram à inseminação artificial - e em que o Estado só reconhece uma enquanto mãe, com a evidente desproteção que a ausência de reconhecimento da outra mãe significa para as crianças face ao risco de eventual morte da única mãe legal ou face ao risco de ser necessária uma decisão sobre a sua saúde na ausência da única mãe legal, para dar apenas alguns exemplos.
Marinho Pinto não vê nem quer ver estas famílias - aliás, é evidente a dificuldade em deixar entrar sequer na sua estrutura de pensamento a ideia de que existem casais de mulheres (embora depois se preocupe muito com a ideia de que as crianças não vão saber o que são "homens" e "mulheres").
3. A coadoção tem que existir em casais do mesmo sexo porque o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já o afirmou inequivocamente.
Condenando a Áustria (por não ter a coadoção em casais do mesmo sexo), o Tribunal afirmou que esta é uma questão de Direitos Humanos e que tem que ser assegurada para cumprir a Convenção Europeia de Direitos Humanos - que é um compromisso internacional assumido por Portugal. O Tribunal aliás explicita que averiguou todos os argumentos (nomeadamente mais sofisticados do que os apresentados por Marinho Pinto) e chegou à conclusão que não justificavam obviamente a inexistência de coadoção em casais do mesmo sexo.
Ou seja, Marinho Pinto não sabe nem quer saber do Direito (e dos Direitos Humanos) sempre que intervém.
E porque a discussão, feita de ignorância ativa, se centra sistematicamente noutra questão, que é a da candidatura à adoção por casais do mesmo sexo, convinha que Marinho Pinto soubesse o que diz a lei.
Por mais que Marinho Pinto grite que "uma criança precisa de uma mãe e de um pai", referindo-se à adoção de crianças que estão em instituições, e apesar da vergonha alheia que sinto sempre que grita pela "natureza" ao falar do Estado de Direito e de tudo o que está subjacente à figura da adoção, a verdade é que Marinho Pinto pelos vistos não deve conhecer nem deve querer conhecer a lei do seu país, que já permite há muito a adoção por apenas uma pessoa (homem ou mulher). Isto para além das evidentes realidades de famílias monoparentais, mas já vimos que as realidades lhe são indiferentes.
A objeção de Marinho Pinto é por isso, vazia, ainda que enérgica na tentativa desesperada de tentar contrariar o óbvio: citando João Miguel Tavares no Público de hoje,
"Só um pensamento totalitário admite o sacrifício de pessoas concretas em nome de princípios abstractos. Querer defender uma ideia de família ideal estando-se nas tintas para o sofrimento de crianças com um nome e com uma cara é uma enorme obscenidade, meus senhores".
Sabemos o impacto desta vitória para tantas famílias e para tantas crianças, conhecemos as suas histórias, os medos, angústias, incertezas e o sofrimento por que já passaram por não serem reconhecidas na lei. Chorámos porque sabíamos que muitas vezes o preconceito não deixa ver as pessoas e não deixa ver as famílias - e não deixa ver as crianças; e sabíamos o quão difícil pode ser ultrapassá-lo e o quão importante e urgente era, neste caso, ultrapassá-lo.
Chorámos porque vimos que em todas as bancadas há pessoas sensíveis ao bem-estar das nossas crianças - e que perceberam que isso é mais importante que tudo o resto e que os argumentos apresentados contra este projeto em concreto nunca se poderiam sobrepor a esse bem-estar.
Chorámos porque lutámos por uma questão que era reconhecidamente uma questão de Direitos Humanos, como já estabeleceu o Tribunal Europeu - e porque percebemos que há pessoas de diversos grupos parlamentares que os valorizam.
Chorámos porque percebemos que Portugal ainda pode ser notícia por boas razões e que, mesmo num momento particularmente duro, as vidas das pessoas podem falar mais alto - e o Parlamento pode dar eco a essas vidas.
Não, não se afirmou o óbvio: que, no que diz respeito à candidatura à adoção, os projetos parentais de casais do mesmo sexo continuam a ser limitados sem qualquer justificação que possa sustentar a atual discriminação. Mas já antecipávamos que, apesar do trabalho que temos feito, e da evolução notável que aconteceu ao longo de um ano (como se comprova com as votações), não seria dado ainda esse passo fundamental. O trabalho, também quanto a esta questão, continua.
Mas conhecer as crianças e as famílias que podem ser protegidas pela coadoção é perceber a urgência desta lei - e a força emocional que encontramos nas nossas famílias é a força com que lutámos e lutamos pelo seu reconhecimento. Como diz, no livro 'Dia C', a Isabel Fiadeiro Advirta - que é sempre uma inspiração: "Trata-se de uma luta contra o tempo em que cada minuto que passa representa vidas inseguras, crianças desprotegidas, famílias discriminadas. O cronómetro não pára, a vida não pára e nós não vamos parar até que os nossos filhos e as nossas filhas estejam em segurança. Juntem-se a nós – ou saiam da frente."
Ao longo dos últimos anos, a ILGA Portugal tem tentado chamar a atenção para a situação de famílias com crianças criadas por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto. Sobretudo casais de mulheres, porque o recurso à inseminação artificial, ainda que limitado em Portugal, existe para todas as mulheres na maior parte dos países civilizados – e, aliás, bem aqui ao lado, em Espanha, desde 1988.
Na ação popular que interpusemos contra o Estado português para garantir a segurança e o bem-estar destas famílias, apresentamos apenas 10 exemplos - que incluem também situações com casais de homens, porque existe, por exemplo, adoção singular em Portugal e um homem gay ou uma mulher lésbica já podem, portanto, adotar e passar depois a viver também em casal. Mas as famílias são muitas mais.
Famílias em que as crianças só vêem reconhecida na lei uma figura parental, embora conheçam duas - e saibam muito bem quem são as suas mães ou os seus pais. Famílias em que uma das mães ou um dos pais pura e simplesmente não existe legalmente, nem na escola, nem no hospital, nem para a assistência à família, nem em caso de separação ou divórcio, nem em caso de morte da única figura legalmente reconhecida.
Superior interesse de crianças? Era o que devíamos assegurar, sim. E o interesse destas crianças é obviamente a segurança e proteção que as demais já têm. Pois é isso que o Estado português lhes nega, com base no preconceito, na ignorância - e na displicência e negligência com que se trata as famílias de pessoas que, como aprendemos diariamente com base na prevalência do insulto quotidiano, são, afinal, um bocadinho menos do que pessoas. No fundo, o Estado ainda nos diz - e diz às nossas crianças - que as nossas crianças não interessam porque não são bem filhas de pessoas: afinal são só filhas de "fufas" ou de "paneleiros".
Qualquer discriminação implica um juízo de desvalor, qualquer discriminação tem subjacente o insulto. Mas nunca uma agressão foi tão violenta quanto aquela que, pela vontade de menorizar e de discriminar, incide sobre as nossas crianças.
É isso que será combatido ou reiterado no nosso Parlamento, no dia 17 de maio, Dia Mundial de Luta Contra a Homofobia e Transfobia.
No passado recente, o Parlamento rejeitou a possibilidade de candidatura à adoção por casais do mesmo sexo, que voltará a ser discutida. E bastaria a leitura do livro “Famílias no Plural”, que editámos recentemente e que conta com contributos de personalidades de renome em diversos campos do saber a nível nacional e internacional, para compreender que a manutenção dessa discriminação se baseia exclusivamente no preconceito.
Mas para além dessa questão, discute-se ainda desta vez, e pela primeira vez, a proteção das nossas crianças com a possibilidade de co-adoção nas famílias que já existem.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou este ano a Áustria precisamente por não estender aos casais do mesmo sexo a possibilidade de co-adoção (ou seja, de reconhecimento legal da segunda figura parental) que existe para casais de sexo diferente. O mesmo Tribunal aponta Portugal como um exemplo da mesma violação da Convenção Europeia de Direitos Humanos, a par da Roménia, Rússia e Ucrânia.
Qualquer pessoa que olhe responsavelmente para esta questão e para a realidade das crianças criadas por casais do mesmo sexo compreende que fazer incidir a discriminação sobre as nossas crianças é absolutamente inaceitável. Temos, portanto, como o TEDH veio clarificar, a obrigação de garantir a todas as crianças a mesma proteção, independentemente dos preconceitos ou até de divergências ideológicas. O dia de amanhã será, por isso, um dia em que também se escreve uma página da história dos Direitos Humanos em Portugal – e que só se pode escrever com a palavra “responsabilidade”.
Já em Portugal, a maioridade das mulheres é mais difícil de estabelecer.
A lei portuguesa, de 2006, num processo em que vingou o projeto do PS encabeçado por Maria de Belém Roseira, estabelece que as técnicas de PMA só podem ser aplicadas como solução para problemas de infertilidade e, para além disso, a mulheres que sejam devidamente tuteladas por homens: casadas ou unidas de facto.
Ou seja, no fundo, em Portugal, a PMA serve para que homens possam ter filhas/os, com a colaboração de mulheres. Daí não ser estranho que, segundo o que foi noticiado, a introdução da maternidade de substituição seja mais consensual para a atual Direção do PS (e, aparentemente, também para o PSD) do que o alargamento do acesso a mulheres sem homens.
Portanto, o projeto apoiado pela atual Direção do PS (e novamente com Maria de Belém Roseira associada ao mesmo) pretende manter exatamente as mesmas restrições da lei atual. Uma mulher solteira ou um casal de mulheres não poderá ter acesso a técnicas de PMA – e isso continuará a ser criminoso, aliás.
Que vão a Espanha, se quiserem. E se puderem pagar esse recurso.
Onde é que já vimos isto? Nopassado. No mesmo passado em que Maria de Belém Roseira era um nome que podia ser associado à Igualdade sem que isso fosse um contrassenso. No mesmo passado em que a autonomia das mulheres era sistematicamente posta em causa.
É que, como se vê pelo exemplo espanhol, esta exclusão já era anacrónica em 2006. Passaram alguns anos com muitas mudanças, nas quais o Partido Socialista esteve envolvido, aliás.
Uma delas tem a ver com a possibilidade de interromper uma gravidez por vontade da mulher: que tal ser coerente e deixar iniciar uma gravidez por vontade da mulher? Até porque também parece que já há adoção singular há uns anos.
Isto para não falar dos casais do mesmo sexo. Se bem me lembro, a lei já estabelece que não é o Estado que tem que impor às mulheres a sua estrutura familiar e parece que reconhece inclusivamente que um casal de mulheres (casado ou unido de facto) é uma família. Não era tempo de se perceber que, no que diz respeito à parentalidade, o que o Estado tem que fazer é apenas garantir a segurança das crianças que são filhas de um casal de mulheres? Ou seja, reconhecer legalmente as duas mães e acabar com a situação de fragilidade enfrentada hoje pelas crianças que já são criadas por casais do mesmo sexo?
As respostas são simples e quer o projeto do Bloco de Esquerda quer, aparentemente, o projeto que terá o apoio da Juventude Socialista (e espera-se que de mais deputadas e deputados socialistas) pretendem acabar com incoerências e anacronismos. E tentam ser responsáveis. A PMA é reconhecida como técnica complementar de reprodução e os projetos asseguram que todas as crianças que nasçam com base nestas técnicas tenham direito à segurança do seu vínculo familiar.
Progressos seguros versus sexismo seguro: a sério que esta escolha sequer se põe?
É um facto que a existência de discriminação noutros países tem já consequências para casais de pessoas do mesmo sexo que não vêem o seu casamento reconhecido nesses países. É a Comissão Europeia que alerta para este problema, com implicações evidentes na liberdade de circulação no espaço da União Europeia. É que também no Direito Comunitário o princípio da não-discriminação é fundamental. Mas o que se depreende da suspensão decretada pelo MNE é que se algum país não permitir o casamento interracial, o consulado se recusa a celebrá-lo. Isso é aceitável? Como em Portugal só existe um casamento na lei e não existe um "casamento entre pessoas do mesmo sexo", caso haja algum impedimento a algum casamento perante as autoridades portuguesas, a escolha só deveria poder ser entre realizar casamentos naquele consulado ou não os realizar. De outra forma, é o Estado português que aceita (e aplica) uma discriminação - e, se bem me lembro, o direito internacional não se sobrepõe à Constituição.